Depois de Blackwater Bridge (Gary Hassay e Anne LeBaron, 2002), álbum que desenhou novos trilhos de confluência entre o saxofone alto e a harpa, e ajudou a redefinir o quadro de relações entre instrumentos de sopro e de cordas, elevando-as a um novo patamar discursivo cujos ecos perduram na memória do ouvinte, eis que a Drimala Records resolveu investir novamente no talento de Gary Hassay, saxofonista criador do excepcional Another Shining Path, do trio Ye Ren, com William Parker e Toshi Makihara – um dos melhores discos de 1999, a todos os títulos recomendável.
A grande notícia é, pois, que Gary Hassay está de regresso aos discos. E agora na companhia da cantora Ellen Christi, senhora de uma elegância vocal irrepreensível, que assim se apresenta nesta proposta de dueto resultante na combinação sonora das vozes de dois artistas absolutamente fora do comum, que se inscreve na série de obras com que a editora de Hampton, Virginia, tem vindo paulatinamente a aprofundar a essência do formato.
Neste sentido, em Tribute to Paradise, a articulação vocal de Ellen Christi, fantástica cantora da free form, assenta como uma luva na sonoridade madeira do saxofone alto do pintor abstracto Gary Hassay. Dois casos extremos de sub-exposição, num mundo em que a música improvisada deste calibre se vê condenada a uma inexorável e progressiva guetização, em favor de produtos e subprodutos de menor valia estética e musical que enxameiam o mercado. Mas isso é outra conversa.
De volta a Tribute to Paradise, ouvido repetidas vezes, é com redobrado prazer que se experimenta cada nova audição, mercê da empatia, intimidade, harmonia e vontade de comunicar dos dois criadores. Christi canta com swing e sem palavras, numa sucessão de onomatopeias (scat) de brilhante definição e limpidez. Hassay constrói cada intervenção com uma impressionante intensidade, servido de tonalidades e texturas pouco usuais, desafiando o ouvinte a cada curva. Sobre Christi escreveu o New York Times: “Canta num estilo forte e cristalino, improvisando com o fraseado de Albert Ayler e a intensidade de John Coltrane”. E isso fica igualmente patente nos três temas em que o som de Christi se funde com a voz de Gary Hassay num canto a capella de muito bom gosto.
Vale a pena o ouvinte fazer o esforço simples de tentar penetrar no âmago do som puro, vogar nos cambiantes da coloratura vocal de Christi, enlear-se no voltear constante do sax alto, que namora a voz de Christi e se espraia em múltiplas e sinuosas linhas melódicas. Parte do encanto desta gravação está no progressivo deslindar dos mistérios da criação musical espontânea; na arte de decifrar estruturas complexas que afinal se traduzem em linhas melódicas de fácil apreensão. Conquista cujo prazer felizmente está ao alcance de qualquer de nós, desde que se disponha a ouvir com profundidade. A paz de espírito que sobrevem é a melhor recompensa que se pode esperar desta promessa de “novo paraíso”.