Paul Murphy Trio, «Ennarre» (CJR) Chegou-me ontem às mãos um disco do Paul Murphy Trio que é de virar o boneco. À noite, enquanto o Benfica me pregava um susto na TV, cortei o som à pantalha e afastei a tensão com Ennarre em fundo. Numa área musical em que é possível encontrar alguns dos mais criativos bateristas de todo o jazz - falo do free jazz -, Murphy, figura física aparentada com Popeye, é primus inter pares e, mais que isso, um músico free extraordinário. Antigo acompanhante de Jimmy Lyons e de Karen Borca (a ouvir, Jimmy Lyons, The Box Set, edição Ayler Records), e mais tarde de Glenn Spearman e William Parker, com quem formou o Trio Hurricane (a ouvir, Suite of Winds, Black Saint), neste Ennarre (Cadence Jazz Records, 2002) Murphy junta forças e energias a Kash Killion, violoncelista obscuro (afinal, não viverão todos este músicos na mais injusta e desaproveitada obscuridade?!), que tem no currículo colaborações com Sun Ra e Pharoah Sanders, e ao pianista tayloriano Joel Futterman (a ouvir, o trio Southern Extreme, com Kidd Jordan e Alvin Fielder, Drimala Records), para uma mais uma aventura free substancial. Não se espere de Ennarre algo de esteticamente inovador. A questão é velha: é claro que estes caminhos já foram percorridos vezes sem conta nos últimos 40 anos; que as prateleiras das editoras estão cheias de discos deste tipo; que nada de especialmente novo tem sido criado, e que o género tem sobrevivido da sua própria e permanente recriação. Porém, é justamente essa capacidade de reciclagem, actualização e reinvenção estética que marca esta obra e faz com que esteja longe de ser apenas mais uma sessão de free jazz. Porque Ennarre é realmente um disco prodigioso: na perfeita consonância do trio; na força e energia que a música destila; no brilhantismo e criatividade da execução técnica; na capacidade de emocionar o ouvinte ao longo das cinco composições instantâneas que compõem o alinhamento do disco, com especial destaque para Sferics - 31 minutos de êxtase criativo.
A quem nunca ouviu estes monstros da livre-improvisação contemporânea, juntos ou separadamente, sugere-se o desafio de partir à descoberta de um mundo de grandes realizações em que as possibilidades criativas são ilimitadas. 1. D1T1 (Paul Murphy) - 4:43 2. Desert Fire (Paul Murphy) - 9:40 3. Intersections (Paul Murphy) - 15:05 4. Sferics (Paul Murphy) - 30:56 5. Zygoun (Paul Murphy) - 11:10
Paul Murphy (bateria); Joel Futterman (piano); Kash Killion (violoncelo)