Cá está o disco ideal para quem só de ouvir a expressão free jazz, alternativa ou cumulativamente, fica com os cabelos em pé, apetece-lhe sacar imediatamente da pistola e fazer fogo sobre o fogo (Fire Music, Archie Shepp), ou mais desesperadamente correr pela ladeira abaixo em busca do primeiro abrigo que lhe salte ao caminho (sugere-se que se tenha todo cuidado, que é sempre pouco, com esta última reacção, pois ela pode reservar-lhe surpresas musicais ainda mais... supreendentes, passe a redundância). Twice Told Tales (DIW, 2003), coincidência ou não, segue o título da novela de Nathaniel Hawthorne (esse mesmo, o de A Letra Escarlate, traduzido para português pelo nosso ultra citado e infra lido Pessoa), é um miminho de livre-improvisação, despreocupadamente preguiçosa, que chega a fingir que é desconcentrada sem deveras ser, e sem perder a coesão interna. Embora seja tendencialmente verdade que quem vê caras não vê corações (eu próprio sou disso um exemplo eloquente, porque só conhecendo-me se perceberá o quanto o aparentemente inócuo frontispício é assaz enganador), pelas carinhas larocas da fotografia é imediatamente reconhecível estarmos vis-a-vis com quatro rapazes da maior simpatia pessoal e, adivinha-se, empatia musical. Ouvido o disco, assim se confirma o que venho de dizer. Ou não se tratasse de Louie Belogenis (na foto, à esquerda) e Tony Malaby (à direita), dois bravos tenoristas de Nova Iorque, pessoal de uma certa "Downtown", formiguinhas muito activas da Grande Maçã, aqui coadjuvados por Trevor Dunn (do zorniano Electric Masada e do pattoniano Fantomas) nas quatro cordas verticais, e por Ryan Sawyer, nos tambores e pratos. Em boa verdade, não se pode dizer que os rapazes neste disco dêem novos mundos ao Mundo, à maneira dos navegadores de antanho. Mas já se pode dizer com maior propriedade que aprofundam percursos anteriores, revisitam lugares de outrora e contemplam a paisagem futura numa perpectiva simultaneamente de grande angular e de zoom sobre os ínfimos detalhes sonoros. Depois da descoberta, geralmente segue-se o povoamento, e este disco trata disso mesmo: povoa-nos de sonhos nocturnos e retempera-nos as energias para o dia seguinte. Sem ter outros pontos de referência, levei algum tempo a identificar e a caracterizar o som de cada saxofonista, mas penso que consegui lá chegar: Além da qualidade vocal de ambos os timbres, Louie Belogenis soa a madeira seca, talvez um pouco adstringente no final; Tony Malaby é mais macio, espesso e cremoso. Combinam tão bem quanto um bom vinho tinto e um doce à sobremesa. Final feliz.