Sobre o post em que, a propósito da audição de Bitches Brew, de Miles Davis, comentei, jocosa e ironicamente, as posições de Wynton Marsalis (em 1999) sobre Miles (de 1969) e sobre a alegada má influência do rock e do sexo (!) no jazz, que resultaria na "corrupção" da música, segundo a entrevista que naquele ano de 1999 deu a Ken Burns (vide excerto publicado), recebi um comentário de Abdul Moimême, que transcrevo na íntegra por me parecer interessante ao abordar questões relacionadas com o que constitui a intervenção no produto sonoro original, por via das remasterizações electrónicas de material analogicamente criado, actividade que em muitos casos desvirtua o trabalho original dos músicos e do técnico de som.
Mas esse, caro Abdul é outro ponto, diferente daquele que abordei no meu provocatório escrito. Vamos ao teu comentário:
Devo dizer que, a titulo meramente provocatório, partilho algo da postura do Wynton Marsalis. Não no que se refere à influência das mulheres e do rock'n'roll – afinal são das coisas boas que a vida nos pode dar- mas sim relativamente à manutenção de alguma da pureza original das coisas. Estou-me a referir à incessante verborreia de re-re-reedições, à pala de desculpas tal como as remasterizações, o aumento do numero de bits de amostragem, ou o tal aniversário... Ontem 16 bits, hoje 24, amanhã... quem sabe? Mas a caso da remasterização de obras é talvez a questão mais delicada das três. Quando esta é feita pelo autor da mistura original o caso é pacifico. Trata-se de uma reinterpretação ou o limar de arestas, devido a alguma vicissitude ou limitação técnica, que na altura não foi possível acertar. No entanto, quando um original é ‘abrilhantado’ por terceiros, acho que o caso é bem diferente. A intenção original do técnico de som deveria, como qualquer criação artística, estar protegida pelos direitos de autor. A título de exemplo cito dois casos paradigmáticos: a digitalização de Interstellar Space, de Coltrane e a reedição de Bitches Brew, de Miles (a propósito da qual este pequeno texto é escrito).
No primeiro caso, o uso de reverb na edição original em LP, é simplesmente abolido.
Usado na edição original em vinil, à boa moda freak dos 70’s, este efeito servia para envolver a musica com uma aura ‘mistico-trancendental’ típica da época.
No segundo caso, em Bitches Brew, ‘revisited’, a mistura é totalmente reinterpretada por novos produtores. Loops que originalmente estavam em mono passaram a estéreo, bombos que subtilmente marcavam as fortes batidas binárias passaram para primeiro plano e, pior que tudo, o magistral eco concebido pelo genial produtor Teo Macero, foi refeito com um processo digital que desfigura completamente a espacialidade do original. Macero criara um eco analógico especialmente para a ocasião, e pelo que consta, não aprovou a nova versão da sua masterização original. Ora grande parte da beleza deste contributo à musica dessa época deve-se à sua magistral montagem e pos-produção. Essa característica é em grande parte devida ao génio de Macero.
Respect!
Excerto da entrevista de Iara Lee a Teo Macero, NYC 1997:
...when I went to CBS in '56, '57 I had a whole engineering department and research department at my beck and call. If I wanted something particular for Miles, I would call them up and say, "I got this kind of crazy idea, can you invent or bring me back a piece of equipment that will do this?" So they did. And many times we used a lot of electronic effects on Miles which Miles really didn't have anything to do with except in the final analysis, whether he liked it or disliked it...
...I mean this remixing of today, it's like taking it back 50 years and to me, I don't think that's right. Because it was created with love and understanding of the artistry, because the artist wanted to progress, I wanted to progress...
...And we did a lot of electronic effects when we did Sketches of Spain. I mean if you listen to it very carefully you'll hear that in one spot on the record the band comes up center and splits, goes around and comes up again. We had all kinds of boxes and one engineer would be monitoring one box and I'll be monitoring the other to make this effect. I mean not many people really have heard that record the way it should be. But they've put it back out again. CBS and the Miles Davis collection. And it's not the same...
...You know, it's a funny thing, but after all these years, after 40 years, what is CBS and Sony putting out? They're reissuing every record I ever made! And in some cases trying to remix it. Those things would be impossible to do. And I've really been fighting them tooth and nail about it because I said, "This is not really right those records were gold. It would sound very contemporary, if I were to do it. If they were to do it, it would sound like an old record. And you can go get the Miles set, the new set with Gil Evans, and you'll hear it. If you had the original record you could hear the differences. The original had a life to it, had a quality to it. The new ones, when they mix it, they lose some of the elements...
Nota longa: A edição de Bitches Brew que estive a ouvir é a remasterizada em 1998, The Complete Bitches Brew Sessions [BOX SET]. Tenho outra, simples, isto é, sem outtakes e alternate takes, reeditada uns anos antes, cujo som é de longe pior. A primeira, sendo certo que é verberada pelo produtor original, Teo Macero, e pesem embora as questões que referes, não me soa mal, apesar da "demixização". Mas, sabemos nós, de masters e remasters adulteradas e/ou não aprovadas pelos músicos e produtores originais está a música em geral (não apenas o jazz) cheia. Monk, segundo sei, por exemplo, não aprovou a edição de Round About Midnight, de que era compositor, designadamente porque, em seu entender, Coltrane apresentava (1956) sinais de não estar bem, de acordo com os padrões do pianista, devido ao recorrente problema com drogas. No entanto, para os fans de Miles e de Coltrane de ontem e de hoje essa questão, se alguma vez se colocou, é de relativa menoridade. Por outro lado, também já li algures que a remasterização de Bitches Brew, na parte em que contravenciona o trabalho de Teo Macero, fá-lo de forma controversa, ainda que relativamente superficial, mas sem desvirtuar em demasia a essência do trabalho de Miles/Macero. Francamente, não sei em que medida tal aconteceu, não possuo a edição original em vinil, no que estou em desvantagem em relação a ti.
Há também quem diga, não sei se é verdade, que o que Macero pretendeu foi reclamar publicamente o que era seu e era legítimo que o fizesse, isto é, a sua parte na concepção sonora da obra-prima. Há sempre um problema quando se mexe no passado. E esse, noutra dimensão, ainda incomoda Wynton Marsalis, na defesa das suas concepções do que é e não é jazz, de como deve e não deve ser o jazz, sabendo que se trata de uma música essencialmente mestiça, produto de muitas influências aos logos de mais de 100 anos, de muito sexo (a observação é dele), vícios vários, electricidade, electrónica, etc, e não uma substância produzida in vitro, pasteurizada, homogeneizada e leofilizada como ele pretende que o jazz seja. Era com isto que eu brincava e não com os aspectos técnicos de Bitches Brew, que, apesar de tudo, me soa bem em The Complete Bitches Brew Sessions [BOX SET]. Mesmo na pendência da tal questão do eco e dos demais putativos crimes do digital sobre o analógico, caro amigo Abdul Moimême.
Para fechar este capítulo que já vai longo, transcrevo Joe Milazzo, que coloca a questão num patamar que me parece relevante:
We may be beneficiaries of Sony’s crassness, Miles’ arrogance, and Macero’s egotism – though I do wonder how many of these they actually sell – but, if so, we are also victims of our own gluttony. Perhaps its that I would like to think better of myself as a consumer than my acquisition of this box set allows. Wouldn’t I rather my money go towards artists who are doing vital work in a contemporary idiom, who are struggling, who will never – well, a probabilistic “never” – be the target of a hostile takeover by Sony, EMI, BMG, et. al.? On which side of the balance sheet do we tally the indulgences of this set? I tell myself its one of life’s slaps to the back of the head that sometimes you only know how good something is by how guilty the experience of it makes you feel.
Grande abraço e manda sempre!