Debutada em Maio de 2005 no Festival International de Musique Actuelle de Victoriaville (FIMAV), no Canadá, a «Composition No 345» voltou a ter em Lisboa um tratamento de leitura, hermenêutica e improvisação idêntico ao que ali recebera, servida pelo mesmo naipe de instrumentos e instrumentistas do recente Anthony Braxton Sextet, uns e outros pouco usuais no figurino braxtoniano de hoje ou de antanho: Anthony Braxton (saxofones alto, soprano e sopranino), Taylor Ho Bynum (trompetes e trombone), Jay Rozen (tuba e percussões) Jessica Pavone (violino), Chris Dahlgren (contrabaixo), Aaron Siegel (bateria e vibrafone). A peça exibida expõe em toda a diversidade o que se poderia chamar de Braxton‑síntese virado para o futuro, ou “ancient to the future”, como diriam os Art Ensemble of Chicago. Sem apresentar uma revisão do tipo colagem das referências de uma carreira já longa e das mais profícuas, nem uma viagem à vol d’oiseau sobre os diferentes marcos de um percurso único, porém, incluiu sinais mais ou menos nítidos dos tempos fundacionais da AACM de Chicago, das primeiras “3 Compositions of New Jazz”; da Creative Construction Company, com Leroy Jenkins e Wadada Leo Smith; passou pelo estádio do Quarteto com Marilyn Crispell, Mark Dresser e Gerry Hemingway (London, Conventry, Bermingham...), e sobrevoou as meditações matemáticas fortemente geometrizadas da Ghost Trance Music. Sem se deixar aprisionar por uma abordagem explicitamente ligada a qualquer daquelas formulações, ou outra porventura mais encostada quer à tradição do jazz, quer à da composição escrita contemporânea, liberto dos compromissos estéticos próprios e alheios, mantém contudo bem vivos e presentes todos os elementos que compõem o seu “sistema” musical, actualmente virado para a descoberta de outros sons, em particular do noise, de que é exemplo a recente, e antes insuspeitável, actuação ao vivo no Victoriaville com os Wolf Eyes, especialistas na matéria, e que gerou um dos maiores bruás no meio da música improvisada. Fazendo jus a esta inclinação, perto do final da peça, o contrabaixo com arco e pedal a fundo de Chris Dahlgren, com o resto da banda no seu encalço, concorria com os aviões que sobrevoavam o espaço aéreo, com vantagem para o contrabaixista.
Porque Braxton, goste-se mais ou menos da sua música, é sem dúvida um compositor e um improvisador que inventou a sua própria linguagem; a partir de múltiplas influências, é certo, soube transformá-la ao longo dos diferentes ciclos por que passou a obra do Professor, permitindo ao ouvinte antecipar novidades para os tempos que se avizinham. Braxton multi-dimensional, o velho Braxton e o novo Braxton, menos interessado em balanços que em fixar um olhar prospectivo, deu sinais de que, com estes músicos, um grupo coeso e de elevado nível técnico e artístico, está pronto para cavar ainda mais fundo. Não há muito mais a dizer sobre Anthony Braxton que ainda não tivesse sido dito. Quanto a esta actuação em particular, apenas acrescentaria que foi uma viagem física, emocional e espiritual extraordinária, como só pode proporcionar um músico com a espessura artística de Anthony Braxton, um dos maiores teóricos, pensadores e criadores da música do último meio século.
Esta foi a melhor maneira de encerrar a edição de 2006 do Jazz em Agosto, festival que este ano apresentou um cartaz cuja qualidade média atingiu um nível bastante elevado.
Anthony Braxton Sextet
Sábado, 12 Ago 2006, 21:30 - Anfiteatro ao Ar Livre da F. Gulbenkian