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21.12.04
 

Em tempos de relativa crise criativa, à míngua de projectos musicais que verdadeiramente consigam romper caminho, ou de outros que, não sendo esteticamente tão atrevidos, comportem a virtualidade de atingir um quantum mínimo suficiente para tirar o ouvinte da letargia a que se vê irremediavelmente condenado, a industria discográfica é useira e vezeira em lançar mão do expediente de esgravatar nas caves, desempoeirar arquivos e reeditar supostas "obras-primas" do antigamente, tantas delas obscenas, no sentido em que revelam hoje o que nem ontem deveriam ter mostrado. Outras iniciativas há, porém, que merecem efusivo aplauso, por trazerem à luz do dia gravações que se foram perdendo no tempo, nuns casos, porque o público, por qualquer razão, a elas não correspondeu em termos de vendas; noutros, porque as edições, já de si tão limitadas, rapidamente se esgotaram e não foram objecto de reedição. Foi esta última a fatalidade que sucedeu com o álbum The Psyche do Revolutionary Ensemble, nome de um trio formado em Nova Iorque no final dos anos 60, no tempo em que a revolução estava na ordem do dia em ambos os lados do Atlântico. Na América do Norte, vivia-se o tempo da militância contra a guerra do Vietname, da luta pelos direitos civis dos negros e, no que à música diz respeito, estava-se em pleno PREC do Jazz, com epicentro em Nova Iorque. Em Manhattan, a partir daquele caldo de cultura político e social em permanente ebulição, irrompeu inebriante o novo jazz, o free jazz, que lançou as bases estéticas de um movimento cuja perenidade chegou aos dias de hoje, renovado e reinventado. Mas, naqueles dias, a música era outra, o empenhamento militante e as novidades chegavam a cada mudança da folha do calendário. Ayler e Coltrane ainda não eram história, Taylor desenhava novas formas abstractas, e Ornette, vindo do interior da América profunda, mudara a forma do jazz havia uma década. Era a época dos lofts, centros criativos onde nasceram e se impuseram tantos dos nomes que viriam a marcar a face do jovem jazz tal como o conhecemos hoje, embora aquele período da história seja dos menos documentados, pois raras eram as oportunidades de tocar e gravar que se ofereciam aos músicos desalinhados com as correntes que melhor caiam no goto do público.
Naquele tempo, em que a fusion e o neobop marcavam a agenda, era extremamente difícil aos artistas de outras modalidades conseguirem singrar, por falta de oportunidades para tocar e gravar. Outro remédio não tinham que tentar sobreviver e lutar contra a adversidade, organizando-se sob diversas formas cooperativas. Nessa situação estavam Leroy Jenkins, Sirone e Jerome Cooper. O primeiro provinha de Chicago, terra da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), espaço da criação colectiva por excelência. Imbuído desse espírito, Jenkins aportou à Big Apple, violino debaixo do braço e no coração um projecto de criação musical espontânea. Para lhe dar forma, precisava de dois parceiros à altura, qualidade que reconheceu no contrabaixista Sirone e no pianista e baterista Jerome Cooper. Assim foi fundada a que viria a ser reconhecida como uma das lendárias formações do novo jazz novaiorquino. Até 1978, altura em que o trio se desmembrou, gravaram seis álbuns, há muito esgotados, publicados em editora própria (RE Records), propositadamente criada para permitir aos artistas controlar a qualidade do produto final.
A preciosidade que a editora Mutable Music deu à luz é um caso sério, não apenas na discografia do tão afamado quão desconhecido trio, como da música improvisada da segunda metade do Séc. XX. Aos ouvidos de hoje, quase 30 anos volvidos sobre a estreia, o produto mostra ter conseguido envelhecer sem estrago e sem perder o gasoso natural, revelando um surpreendente amadurecimento da substância que, à época, deveria ter soado a espumante revolução musical.
The Psyche captou bem o espírito do free jazz daqueles conturbados tempos de 1975. Formalmente, desenvolve-se em três peças de estruturação mínima, que os músicos expõem em longas passagens conjuntas, trios, duos e solos. A primeira peça, de 26 minutos (Invasion), corresponde ao lado A do originário LP. Após uma breve introdução ao estilo de chamamento dos fiéis, avança na explora intensa de uma gama variada de tonalidades e texturas orgânicas, em progressão rápida e swingante, toada que liberta o violino para uma longa série de fantásticos solos, sempre apoiados pela poderosa marcação eléctrica de Sirone, justaposta com a percussão em pulso livre de Jerome Cooper. Segue-se uma turbulenta intervenção do piano-free de Cooper, instrumento ao qual aplica a mesma garra percussiva que às peles e pratos. A segunda peça é outra pedra preciosa da jóia musical que é The Psyche. Hu-man, creditada a Sirone, é um momento de profunda reflexão filosófico-musical, com destaque para o trabalho das cordas, que a certa altura evoluem de um fundo sombrio e meditativo para um estádio luminoso, induzido pela energética improvisação do trio. A fechar o disco, Collegno repõe o combo nos caminhos da trepidante improvisação colectiva que fizeram do Revolutionary Ensemble um dos mais inovadores nomes da música improvisada de todos os tempos, cujo trabalho passa agora a estar ao alcance do público em geral. Há horas felizes!

 


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