Ainda sob os ecos da prestação de Cecil Taylor, Tony Oxley e Bill Dixon no Guimarães Jazz deste ano, a que não assisti e sobre a qual já ouvi e li opiniões muito díspares (para uns, muito bom; para outros, nem tanto) como é bom e saudável que haja, repesco uma opinião há tempos publicada na Tomajazz sobre o concerto de Taylor & Oxley em Fevereiro deste ano, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa:
"Está há muito esgotada a discussão sobre se o que Cecil Taylor toca é jazz ou música contemporânea. Outra coisa será, porque o que desde há décadas se conhece com a marca do mestre, e, em particular, o que se ouviu no Centro Cultural de Belém, na noite de 17 de Fevereiro de 2004, foi algo que está para além dos limites do jazz, um meta-jazz, se se quiser; mas que, por outro lado, também não se enquadra nos estritos parâmetros da música contemporânea ou da new music. É, diria, um tertium genus inclassificável, pesem embora as tentativas de arrumação nesta ou naquela categoria, tarefa por demais estulta. Cecil Taylor é, quase sempre, referenciado como um músico de Jazz. Este, quer-me parecer, estará para a música de Taylor, como o Latim está para as actuais línguas latinas. Isto é, está-lhe nas fundações, na estrutura, na massa do sangue que lhe circula nas veias, no ritmo interior, na respiração. Pressente-se, mais do que se vê; está-lhe ainda nalgum vocabulário e na articulação expressiva. Porém, na raíz, corpo e espírito, no mais recôndito do ser, do que se trata é de música improvisada total, no que isto tem de reflexo num tempo presente e na mais remota ancestralidade. Foi esta música simultaneamente temporal e intemporal - no duplo sentido em que nela cabe o tempo todo, e que não pertence a tempo nenhum - a que nos foi oferecida em criação directa, imediata e espontânea, por Taylor & Oxley. Uma música tensa e ritualística, música sacra de culturas tribais imaginárias, que tanto podem ser do passado, como do futuro. A execução, organizada em dois sets de tema único, cuja duração me pareceu próxima dos 45 minutos cada (é-me difícil calcular, porque a certa altura perdi a noção do tempo), a que acresceu um breve encore, mostrou-nos dois criadores de comprovado e inquestionável virtuosismo técnico, em excelente forma física e criativa. Taylor fez uso intensivo dos seus inesgotáveis recursos pianísticos, com os característicos clusters de acordes dissonantes, em permanente discurso atonal, fortemente percussivo, que ora ascendia a cumes de intensidade emocionalmente opressiva, ora descomprimia, distendido em breves momentos de contido lirismo poético, libertário e encantatório. Do lado direito do palco, em absoluta compatibilidade, Tony Oxley, ícone do experimentalismo e da free improv britânica, contrapontuava de forma densa e polirrítmica, preenchendo o resto da tela com as cores personalizadas do seu kit. Produziu as mais requintadas sonoridades, dispostas em camadas de ritmo e melodia, plenas de detalhe e riqueza tímbrica e textural, fornecendo a Taylor o ambiente perfeito para sobre ele escrever e rescrever páginas e páginas da mais entusiasmante improvisação livre. A isto acresce a fantástica linguagem corporal do duo, como se os músicos estivessem a dançar um bailado de movimentos livres, uma dança mágica que, desde a noite dos tempos, convoca os espíritos para a celebração da beleza musical em estado puro, patente na magnitude de cada nota, célula e fragmento temporal. Cecil Taylor & Tony Oxley transportam a Música, enquanto arte, a estados superiores de transparência e de transcendência tais que, mais puro que o seu som, só o silêncio absoluto. E esse, sabemos, é impossível".