Não pode a gente baldar-se a um concerto, que não fique desconcertado com a crítica que lê nos dias imediatos. Faltei ao Brad Mehldau no CCB. Respeito o pianista, mas confesso não ser dos que mais me tocam ou seduzem. Admirando embora a capacidade técnica e emocional do artista, já me cansam as versões de clássicos dos Beatles, dos Radiohead (para os mais modernos); ou dos Soundgarden (para os mais alternativos). Isto, sem prejuízo de lhe aplaudir as escolhas. Quando me dá para aqueles lados (os do piano-jazz), na família classizante ainda não consegui ouvir melhor que os primos Jarrett e Evans. Outra espessura, outra maturidade, outra densidade. Tão bons, que me fazem apetecer voar para outras paragens nas asas de Paul Bley.
Mas que li eu de tão extravagante? Nada, só alguma variedade de opiniões, umas quase nos antípodas de outras, o que é saudável e só abona a favor da crítica e do criticado. Mal do artista que cai nas armadilhas do consensual, e, já agora, dos críticos que seguem a mesma pavloviana cartilha ou grelha de análise.
No "Diário de Notícias" leio em título e em fervorosa crítica, empolgadas referências à “transcendência”, qualidade própria do maravilhoso “estado de graça” do grande "génio" do qual apenas Jarrett se abeiraria no trio Standards, por entre desvalorizações de outros sub-géneros do jazz (free e pós-free, expressamente nomeados). Como se para dizer bem de alguém tivessemos que arrasar os parentes. Tss... Se a qualidade do produto é intrínseca - como é o caso -, faz sentido apoucar para enaltecer? Permito-me duvidar do método e dos objectivos.
No "Correio da Manhã", igualmente enlevado e quase de lágrima ao canto do olho, impressionou-me a carga metafórica empregada no comentário sobre o concerto‑missa. Em Belém (não há coincidências) foi vista a Luz do novo Messias do Jazz.
Calma, não dramatizemos em excesso: é apenas um bom, um excelente pianista. Porquê começar já a hiperbolizar, sob pena de gastarmos todas as munições logo na abertura da caça? Só estamos ainda em Fevereiro e já bradamos pela transcendência, já apelamos ao sublime, ao sobrenatural e ao mais que está para lá do céu!? Compreende-se: se a clássica tem Mozart, o jazz não lhe pode ficar atrás: Mehldau!
Lidas estas pungentes cenas metafísicas, fizeram-me elas recordar a história dos três pastorinhos videntes. Faltaria um, claro, mas esse não escreve em jornais, que eu saiba; mandou apenas um mail carregado de adjectivação da mais superlativa e encomiástica que encontrar se possa. Qual Cavaco, Mehldau à presidência e já!
A seguir passei ao "Blitz". Que sim, foi um bom concerto, com alguns pontos fracos (heresia! anátema! fogueira!), mas não tantos que chegassem para arruinar a prestação do trio. Bem assinala o semanário que Mehldau, além de respeitado, é “venerado”. O que atrás se conta não deixa mentir e confirma tão peculiar acepção. Para o "Blitz", o melhor do piano de Mehldau parece ter sido o contrabaixo de Grenadier. O que é bem possível e não custa a crer.
No "Público", li algo pelo mesmo tom de afrontoso desafio à fé; que sim, mas também, e tal, venha outro que este já está arrumado. Deste lado, a propensão para as coisas da imanência não assumiu o mesmo peso específico. Pareceu-me até que acintosamente raiou a mais impenitente e secularizada análise crítica, dando razão aos que afirmam ser este problema (a secularidade) uma questão central nas sociedades ocidentais.
Nos blogues, o que li também pendeu mais para o profano, sem embandeiramentos em arco ou bentas afirmações em demasia. Ninguém parece ter saído defraudado (era o que faltava…), embora um ou outro escriba tivesse assinalado a previsibilidade e a preguiça do pianista em soltar-se dos clichés em que se foi enredando ao longo dos últimos anos. Também não espanta que tal pudesse ter acontecido a Mehldau (blasfémia?), ideia que me parece aceitável mesmo para uma parte dos que acreditam ter ele sido concebido sem o pecado da "mnemónica artificial" (ou seria Mena Mónica ao natural?) e ungido pela graça pianal, com o patrocínio da casa Steinway & Sons.
Erm suma: de um lado, os crentes que contemplaram a Verdade; do outro, os do profano, que não vêem nada de transcendente nesta art of the trio; apenas a esperada competência de um pianista de primeira água.
Está-me a querer parecer que a agenda política actual contaminou decisivamente o discurso crítico do jazz. Estará em preparação uma nova cruzada? Será que vai haver bandeiras queimadas, sedes de clubes incendiadas, o CCB apedrejado, efígies várias derrubadas, sei lá que mais?! Não tarda, vem aí o Prof. Freitas com outro comunicado a esgrimir contra a "licenciosidade" do jazz não clássico. E tem toda a razão. A César o que é de César. Ora porra!