Call it Anything!
miles electric: a differente kind of blue
featuring his performance at the isle of wight
1970 foi um ano particularmente prolífico para Miles Dewey Davis III. Com a gravação de A Tribute to Jack Johnson, Miles começara a consolidar uma viragem radical que o afastara da mainstream jazzista em direcção às batidas binárias do rock e do funk. A cisão já fora anunciada no seu álbum de 1968, Miles in the Sky, com o tema Stuff, onde piano e contrabaixo foram substituídos por instrumentos electrificados. No entanto é com Bitches Brew (1969) que Miles choca definitivamente o establishment musical.
miles electric documenta magistralmente esse momento de transição, onde o trompetista, acompanhado por um elenco de luxo, Jack DeJohnette, Airto Moreira, Dave Holland, Chick Corea, Keith Jarrett e Gary Bartz (na altura, ainda relativamente inexperientes), deixa perplexa uma audiência de 600.000 almas.
Gravado durante um dos maiores festivais da história do rock, Miles Davis consegue, ainda hoje, surpreender-nos pela carga emotiva dos seus solos, assim como pelas verdadeiras descargas de energia sobre o microfone. O seu anterior minimalismo, a pairar no efémero, dá aqui lugar a uma abordagem onde as acentuações rítmicas prevalecem sobre qualquer lirismo melódico. Não é que a melodia não continue a constituir a sua ferramenta base (ele próprio o refere numa entrevista); o que acontece é que Miles abstrai o seu discurso, depurado-o ainda mais, até chegar ao essencial: o ritmo! Nesta perspectiva, os diálogos entre o trompete e a cuica de Airto fazem todo o sentido, dado tratar-se aqui de dois instrumentos de percussão. Assim, o trompete transforma-se em tambor.
Apesar da absoluta abstracção dos solos de Miles nesta fase, aproximando-o dos discursos musicais mais radicais da época, o músico incita a banda a fornecer um tapete sonoro fortemente sustentado num batida funky, mais próximo de James Brown do que do free de Ornette. No entanto Miles dá liberdade absoluta ao solista. É o caso dos magníficos solos de Gary Bartz, interpretados no seu alto ou no soprano. Já Chick Corea e Keith Jarrett limitam-se a criar o pano de fundo e texturas necessárias à actuação. Sem dúvida, esta curta performance está repleta de carga dramática. Cada aproximação ao microfone, por parte do mestre, é no mínimo aterradora.
Dave Holland, sempre sorridente, marca o groove incessantemente com um timbre que não deixam de lembrar o seu conterrâneo Jack Bruce. Sem essa referência a imposição de Miles Davis, a Holland, de trocar o contrabaixo pelo baixo eléctrico tornar-se-ia uma cruz difícil de suportar. Mas Miles era assim, gostava de arriscar, arrastando tudo e todos com ele, o público mais fiel incluindo.
As entrevistas fornecidas, assim como os vários excerto de concertos, servem para dar consistência e enquadramento ao DVD. Tratam-se de depoimentos dos seus sideman, reveladores da personalidade e génio do controverso músico.
Os músicos exemplificam o seu discurso com breves interpretações a solo. A mais impressionante será a de Airto, que, aliado apenas da sua voz e algums instrumentos de percussão, faz tributo ao líder numa arrepiante interpretação do tema Bitches Brew.
Numa provocação, caracteristicamente irónica, Miles intitula o concerto Call it Anything! No entanto o evento percorre grande parte do repertório de Bitches Brew, incluindo temas como Sanctuary, Spanish Key, e Miles Runs The Voodoo Down.
Numa coisa todos os presentes estão de acordo, uma das maiores virtudes de Miles era saber ouvir.
Finalmente há que referir a óptima qualidade do som, da sua mistura, e da produção deste precioso documento.
Discografia seleccionada (1968-72):
1968
Miles in the Sky
Filles de Kilimanjaro
1969
In a Silent Way
Bitches Brew
Big Fun
1970
Live-Evil
A Tribute to Jack Johnson
Black Beauty: Miles Davis at Fillmore West [live]
Miles Davis at Fillmore: Live at the Fillmore ...
1972
On the Corner
Get Up With It
In Concert [1973] [live]
In Concert: Live at Philharmonic Hall
Miles Davis at the Lincoln Center [live]
Outros Títulos da Época:
1970
Abraxas / Santana
Band of Gypsies / Jimi Hendrix
Turn it Over / Lifetime
Abdul Moimême