Do saxofonista Rent Romus – fundador da Edgetone Records, produtor, director executivo da outsound.org, curador da SIMM Music Series, membro da Ultra Independent Recording Coalition e dinamizador de um sem-número de actividades relacionadas com a música improvisada californiana – há muito que se aguardava por uma segunda saída com o grupo Lords of Outland, depois de Destinations Suite, de 2000. Várias encarnações, entradas e saídas depois, eis que Romus reinstalou os Lords num novo figurino criativo, repartido pelos 12 temas do novo CD, Culture of Pain. As primeiras impressões, uma vez assente a poeira inicial, são confirmadas pelos subsequentes mergulhos de cabeça nesta extraordinária visão sobre a cultura da dor, revelam o lado demoníaco caricatural que, quer o vibrato do saxofone alto, quer a voz electronicamente processada de Rent Romus, instilam e simultaneamente exorcizam, num registo ambíguo entre seriedade e paródia.
Por sobre a cauterização de uma vasta wasteland, na qual já não possível traçar as antigas fronteiras do jazz, cujo corpo jaz exangue, o grupo procura reanimar e repovoar o espaço deixado vago com os resíduos daquele género, infundindo-lhes coerência e vida pulsante. Um estado em que é a liberdade de expressão sónica a reconstruir o tempo e o espaço multi-dimensional em moldes que, sendo embora reconhecíveis por referência ao passado, são já de uma outra dimensão, um passo que vai do fugaz presente em relação ao que está para vir.
Os efeitos de articulação entre luz e trevas materializam-se em multiplas combinações sonoras, amplificadas através de efeitos especiais criados por sons febris e extravagantes nascidos do cruzamento das guitarras eléctricas de C. J. Reaven Borosque e Ray Shaeffer, e da percussão restolhante de Phillip Everett. O conjunto efervescente é temperado por pinceladas da electrónica de belo efeito e por descargas eléctricas de noise controlado, que deixam o ouvinte com um sorriso irónico ao longo da hora de duração do disco.
O ambiente geral é o de um certo psicadelismo bizarro, que, preservando a qualidade experimental e de pesquisa desta música, serve de veículo de expressão às inquietações artísticas da mente obsessiva de Rent Romus, que simultaneamente fazem parte da cultura pop californiana.
Saliente-se o relevante contributo de um conjunto de convidados, eles próprios membros da comunidade de improvisadores do Norte da Califórnia: Jim Ryan, em saxofone tenor, Darren Johnston, trompete, Scott Looney, piano, e Damon Smith, contrabaixo, membros da Jim Ryan Forward Energy, acrescentam espírito de aventura à base flexível dos Lords of Outland.
Free music moderna e poderosa, disciplinada e harmonizada sob a direcção de Rent Romus, rende homenagem a uma das mais marcantes influências do líder – Albert Ayler, cujo fantasma passeia alegremente ao longo de todo o disco, materializando-se na releitura de Universal Indians e Saints, composições originais do saxofonista de Cleveland, Ohio.
Culture of Pain, grande sucesso artístico, é um acontecimento visionário na redefinição de novas coordenadas para a música improvisada que provém do jazz, sem compromissos nem preconceitos. “No rules, no borders”. Imperdível.
Rent Romus's Lords of Outland - Culture of Pain (Edgetone Records, 2006)