Hendrix
«O estilo de Jimi Hendrix é epigonal de todos os solistas de rock pelos elementos que articula. Apresenta um tema, um motivo, uma frase, um som ou uma nota, e une-os em múltiplas sensações a um outro motivo, frase, som ou nota.
Este intercâmbio identifica o seu processo de improvisação. A condição de poder unir essas matrizes formais a outras semelhantes subsiste até ao momento que o centro tonal se esgota nos critérios próprios da generalidade.
A vibração interior, secreta, íntima, conduz o fluxo sonoro a outra singularidade musical, onde se começa o irrecomeçável.
Repetições, sequências homogéneas que exalam múltiplas figuras; Hendrix nunca expõe uma ideia definitiva, a natureza das situações é sempre alterada.
Tais formas discursivas, prenhes de possibilidades, são categóricas, imediatas, não definidas previamente pela composição temática.
As formas instrumentais interceptam-se concretizando um sistema de signos musicais dependentes da evidência intuitiva e sensorial.
A multiplicidade de sons parasitários que se desenvolve nessa relação empresta á matéria improvisada uma natureza cósmica.
Os elementos musicais (palavras, onomatopeias, grunhidos, melodias, esboços harmónicos, sínteses atonais, objectos sonoros) sobrecarregam o pensamento de Hendrix que procura progressivamente libertar-se deles numa significação rítmica potente e vertiginosa.
As imagens sonoras surgem em catadupa, precárias, fantasistas com um valor ritual que o vocalista/guitarrista evoca a cada instante.
Sofrem graduações sucessivas, paroxísticas/repousantes; variáveis/constantes, produzindo matérias eléctricas como um fundo (background).
Na improvisação de Hendrix nada é finito. Todos os elementos se submetem a termos de relação e potência.
As leis gerais dos solos expressam-se superficialmente, a única lei em vigor é a de transgressão; transgressão ao movimento tonal, à modalidade usada, à linearidade sonora, ao movimento rítmico, do carácter imitativo das sequências ;essa transgressão múltipla é operada por técnicas particulares: feed-back, distorções, vibrações, dissonâncias, ecos, roturas, raspagens, experimentações chamânicas, gritos cavernosos, frases vocais líricas e insinuantes, recorrência riquíssima da imaginação.
A técnica blues riff, reiteração de várias frases acopladas, foi também desenvolvida por Hendrix.
Recorreu ao feed-back colocando a guitarra à frente das colunas e elevando o volume da amplificação ao máximo.
Certa vez comprou dois pequenos amplificadores e introduziu-os num balde de água, subiu o volume e o efeito foi cataclísmico.
O prodígio de Hendrix foi seleccionar voluvelmente fórmulas musicais que a improvisação conduzia a um ponto zero, ponto esse donde o solista partia para outro discurso que seria igualmente reduzido ao incaracterístico.
As repetições são hipóteses de novas sínteses generalizadas e afectivas.
Hendrix radicaliza o experimentalismo e a esquizofrenia (intensificada pela droga) como categorias reais da matéria sonora apresentada como inovação constante.
Oiçamos a sua música, o abismo demencial em que o guitarrista se debruça repetidamente aprofunda obsessões, interdita a escolha de vias consequentes, reclama-se do irracionalismo, convida a excessos suicidas, suspende o pensamento na vontade irrealizada, dá-lhe a morte apenas como obstáculo.
E Hendrix entra em delírio, torna-se agressivo, encadeia perversões, solta obscenidades, mima volúpias, agride a sacralidade do artista, estigmatiza o próprio meio de construção musical - na provocação máxima, parte a guitarra e joga-a como último despojo; da alucinação para o público; possesso, insiste, reconsidera outra guitarra, ironiza selvaticamente o circuito criador da improvisação alegadamente humorística, desafia todas as leis, institui o saber anárquico na ordem de contingências em que prosseguem os solos monumentais.
Aí sacrifica o novo elemento temático, novo moínho de vento contra o qual se bate.
Evoca tudo o que empiricamente adquiriu, submerge o expressivo no inconsciente, deixa-se guiar pelo gesto; é o gesto intuitivo e alienado que orienta o solo; o corpo, na repetição do acto já ficou marcado; as mãos executam as mesmas figuras (distorcidas pelo descontrolo cerebral), a garganta solta os mesmos gritos, liberta as mesmas palavras, perverte os mesmos discursos.
Torvelinho, gravitação, dança, salto, mímica, esgares que o obrigam a sair do letargo para dominar reflexivamente a paranóia ameaçadora, na volúpia do abismo formula precisamente uma melodia; o drama do esvaziamento interior, a extroversão da omnisciência do solista que partiu do nada. Um retorno à dialéctica luminosa e maldita do corpo e do pensamento.
Hendrix descobriu e oferece-nos o prazer».
Jorge Lima Barreto