Depois de em diversas datas de Novembro passado terem tocado em Lisboa (Galeria Diferença e Lisboa Bar), de onde me chegaram ecos intrigantes acerca da música do
Sei Miguel All-Stars, eis que chegara a hora de, pessoalmente e em directo, experimentar o novo trabalho do sexteto. Neste caso, com o aliciante de o grupo, na sessão da
Trem Azul, acolher um convidado no seu seio, o saxofonista tenor
Carlos Martins.
Com o bem reaparecido
Sei Miguel, em trompete de bolso, integram os All-Stars,
Fala Mariam, trombone alto,
Rafael Toral, oscilador de eléctrodos,
Manuel Mota, guitarra eléctrica,
Pedro Lourenço, baixo eléctrico e
César Burago, percussão. Que se ouviu na Trem Azul? Estruturas, fórmulas de reacção previamente estudadas, ensaiadas as soluções que põem em prática no momento, como peças que vão pegando e tentando encaixar de acordo com o regulamento de um jogo de colagens e sobreposições poliédricas, arquitectura com projecto.
Há contudo um interessante lado de improvisação, ainda que parametrizado dentro de opções lógicas previamente tomadas quanto à montagem e execução de sons breves. Música de grande quietude, esconde contudo uma enorme riqueza de pormenor, cada som especialmente desenhado para encaixar num determinado espaço, deixando perpassar uma sensação/obsessão de controlo sobre cada milímetro ou segundo. Poder-se-ia reclamar pela falta de vivacidade ou de variação dinâmica, mas este é o desenho da música de Sei Miguel e dos seus All-Stars, na sua beleza rarefeita de que é feito o seu sistema musical, a poética melancolia que Fala Mariam trabalha por dentro, em entendimento perfeito com o trompete de bolso, embalados ambos pela ductilidade das cordas de Manuel Mota e Pedro Lourenço. Fez-me lembrar alguns aspectos do movimento da
King Übü Örchestrü, de Wolfgang Fuchs, que investe na quase negação do indivíduo enquanto solista e na grande azáfama colectiva em ambiente sossegado.
César Burago, percussionista versátil de variados contextos e abordagens, optou por um estilo para-metronímico (com alguns lapsos), mais dado à repetição minimal de figuras geométricas que à liberdade de pulso ou à criação de texturas. Ganhou-se em métrica e rima, perdeu-se em dinâmica e em fantasia. Ter-me-ia agradado mais esta segunda opção, compatível com o kit mínimo de duas tímbalas e pequenos satélites acessórios com que Burago trabalhou.
Carlos Martins começou um tanto perdido na mistura, oscilando ao sabor da onda, como que a estudar a melhor forma de intervir e de adequar o seu estilo a um discurso colectivo que, de habitual, não é o
seu. Conseguiu um espaço próprio sem empurrar nem fazer-se ouvir à força por cima do sexteto. Nessa medida, integrou-se na paisagem acústica, logrando aumentar-lhe a variedade de vistas e a temperatura ambiente, justamente nos momentos em que a música parecia pedir um suplemento de energia controlada.
Sou sensível à imagem visual de um tagger a pintar com lata de spray, enquanto os outros músicos trocam impressões entre si (mais entre si que com o público, frequentemente). A ideia funcionou plasticamente, pese embora a reduzida versatilidade tímbrica e textural do oscilador de eléctrodos, dispositivo com uma paleta relativamente limitada, mesmo nas mãos de Rafael Toral. Se bem que maleável e funcional para criar ressonâncias e pontos de intersecção com os outros instrumentos, ou preencher de forma arrítmica espaços deixados em branco – aspectos estes, plenamente conseguidos – viu o seu potencial de invenção sonora mitigado pela sobreexposição e omnipresença, que acabou por distrair o ouvinte, perturbando a fruição completa dos pormenores de uma música que requer elevada concentração para ser melhor apreciada.
À vista do pano que a vela tem, ainda a poderemos ver enfunar num futuro próximo. Assim continuem a soprar os bons ventos e a equipagem dos All-Stars manobre convenientemente, no sentido de sanear o acessório e se concentrar no essencial.