Foi pena o público ter sido escasso, porque o recital do português Carlos Bechegas (flautas e electrónica) e do britânico Barry Guy (contrabaixo de cinco cordas), no âmbito do Festival Música Viva / Entr'Artes 2005, merecia ter tido mais gente na assistência. As altas expectativas para o encontro entre os dois improvisadores foram totalmente cumpridas. Assistiu-se ao desvendar de um vasto universo de concepção improvisada, na permanente procura das possibilidades expressivas dos instrumentos. As intervenções alternaram-se entre duos e solos, explorando intensamente técnicas, registos e timbres, do suave e subtil ao mais extremo. Carlos Bechegas e Barry Guy entenderam-se bem, numa conversa inventiva e original, que primou pelos contrastes, oposições e aproximações, diálogo vivo e estimulante. Dois artistas no topo da investigação sonora, no melhor da sua forma e sensibilidade. Excelente concerto, de dois em pipa.
Abdul Moimême viu a coisa assim:
«Achei interessante o contraste entre a exuberância tecnológica de Carlos Bechegas e o uso minimalista que Barry Guy faz da electrónica. De todos os contrabaixistas que têm passado por cá e que usam de alguma forma a electricidade como modo de moldar o seu som, Guy é aquele com o qual este elemento está mais discretamente fundido com a acústica do próprio instrumento. Guy não pretende com certeza alterar o seu timbre, querendo apenas ampliar certos contornos que sem um pedal de volume não seria possível projectar a um fórum alargado. O que o distingue é o subtil domínio dessa técnica sendo quase impossível discernir entre as dinâmicas endógenas (devidas ao ataque que o instrumentista usa) e aquelas permitidas pela aplicação do 'turbo-sonico’. A sua concentração incide primordialmente sobre as infinitas possibilidade tímbricas do contrabaixo propriamente dito. Aqui Guy é mestre. Depurando o seu discurso ao essencial, os elementos tradicionalmente conotados com a criação musical: melodia, harmonia e ritmo dão lugar a texturas, dinâmicas e um sentido de encenação dramática. Assim, permanece apenas o denominador comum de todas as músicas: o ritmo. Na invenção Guy foi imparável usando cada milímetro quadrado do seu instrumento como potencial estímulo rítmico: o justo equilíbrio entre o aleatório e o propositado. O seu último gesto: deixar cair ao chão o bilro - com o qual transformara o baixo numa autentica marimba - exemplifica essa intencionalidade. Bechegas esteve no seu melhor a solo e na segunda parte do concerto. A complexa tarefa de 'sintonizar' máquinas abafou inicialmente a projecção do seu som, contrastando com a clareza e brilho (quase metálico) do contrabaixo. Já de rédeas na mão, Bechegas soltou a sua característica e voluptuosa verve num discurso onde o humor funcionou como arma de subversão de um discurso erudito. A solo o seu som ganhou a clareza e projecção dignas de um excelente improvisador. Na sua complexa arquitectura de sobreposição de vozes, em vários registos simultâneos, foi curioso ouvir uma nítida linha melódica nos registos agudos com os médios e graves a funcionar apenas como textura de fundo e não necessariamente como contra melodias. Um dos momentos de maior clímax foi um breve trecho em que flauta e baixo voaram até as regiões rarefeitas dos registos 'altíssimo', criando um sentido de poderosa vertigem sonora. No entanto, momentos empolgantes proliferaram em suficiente número para transformar o evento numa grande noite de música. Só foi pena a falta de promoção. Não fosse um encontro fortuito com o próprio Barry Guy, à entrada de um restaurante.... Assim: BOOTLEGGERS DE PORTUGAL, UNI-VOS! Divulguem vocês! » - Abdul Moimême