A MÚSICA DE SERRALVES
Desde há meio século que a Fundação Gulbenkian se mantém hegemónica na sua intervenção cultural; de tal forma que sem as suas iniciativas para as novas músicas, no seu carácter mais variado mas especialemente votadas ao classicismo contemporâneo, praticamente nada teria acontecido de especial entre nós - é certo que desde os finais da década de 1980 surgiram em Lisboa a Culturgest e o CCB, com actividades meritórias, entre outras instituições que inflectem no progresso musical de impossível recenceamento neste escopo.
Mas, no Porto, a Fundação Serralves tornou-se um pólo de absoluta importância, local, nacional e internacional.Se nas artes plásticas foi o farol, com inúmeros eventos, considerando, outrossim, o video, o cinema, a performarte e a instalação, na música, teve o seu epigonismo pela qualidade e pelo vanguardismo. A aposta esteve mais votada em generalidades da música de hoje, consideração multíplice, de relacionamento entre a tecnologia e a estética hodiernas, com carácter transgressivo, inovador, por certo comprometida na promoção de factores da pósmodernidade.
Em 1996, uma homenagem a Jorge Peixinho pela Oficina Musical e pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (fundado pelo malogrado compositor) reafirmou o epítome da contemporaneidade da música portuguesa.
Em 1997 concretizou-se um ambicioso e relevante "Ciclo de Música Electrónica" com obras de Cândido Lima, António de Sousa Dias, João Pedro Oliveira e Telectu, live com o saxofonista Daniel Kientzy.
Em 1998 celebrou-se o génio do compositor Giorgi Ligeti num Ciclo homónimo, e com representações de trabalhos os mais significativos pelo Quarteto Mandelring e Volker Banfield.
No ano 2000 a "Semana Emanuel Nunes", numa realização do Ictus Ensemble, dava-nos uma retrospectiva do que foi o maior compositor português do Século XX, que se consagrou no estrangeiro (mutatis mutandis Paula Rego e Helena Vieira da Silva) - trabalhos, debates, publicações inusitadas. O retrato foi estabelecido por grandes virtuosos como o flautista PY Artaud, entre outros.
No primeiro ano do Século XXI foi também a vez de notáveis intérpretes trazerem até nós figurações eventualmente inéditas de compositores de hoje: casos de Jay Gottlieb para Glass, Cage, Antheil e John Adams; Christoph Prégardien e Siegfried Mauser para Shubert Schumann, Rihm e Killmayer; Drumming, grupo de percussão e Henri Bok para Donatoni e Cesar Camarero; Pedro Burmester, Fausto Neves e Drumming num concerto em torno de George Crumb... Em 2004, excutantes do Teatro Nacional S. Carlos deram-nos a conhecer facetas do americano Morton Feldman.
Após o desaparecimento do consagrado "Ciclo de Nova Música Improvisada" da Fundaçãoo Gulbenkian e da realização errática e radicalmente meritória dos "Fonoteca Files" da CML, em Serralves creditou-se uma elite de novos improvisadores internacionais com um fulgor actualizante (e.g. Sainkho Namtchylak, 2001; 20º Aniversário de Telectu com Eddie Prévost, John Edwards e Tom Chant, 2001; Pantychrist de Justin Bond, Bob Ostertag, Jon Rose; Maggie Nicols/Irene Schweizer/Charlotte Hug, em 2003; Zeena Parkins e Bruno Chevillon, 2004).
O evento mais visível, embora controverso, oscilando entre o estereotipo e inovação, recalcitrante em figuras já reconhecidas em outros festivais nacionais e algumas novidades exponenciais, portanto com certo desequilíbrio estético-jazzístico, por vezes eximindo-se da qualificação genuína do Jazz, que ainda persevera, está na rubrica "Jazz no Parque" - acontecimento estival e anual, nos luxuriantes jardins.
Podemos, com parcimónia, fazer uma resenha do que de mais relevante lá passou: Carlos Zíngaro/ Roger Turner/ Tom Cora (1994); Paul Motion & The Electric Be Bop Band (1996), David Holland Quintet (1997); John Surman/ John Taylor e, Humair/Sclavis/Chevillon (1998); Cecil Taylor, que terá sido a apoteose do certame, (1999); o exaltante Willem Breuker Kollektief (2000); a Vienna Art Orchestra (2001); o celebrado Herbie Nicols Project (2003); o empolgante Gerry Hemingway Quartet (2004) ... .
Declinando para um mundo maravilhoso da Música Experimental, que lida com outros materiais, estruturações inabituais, condicionalismos cénicos e praxiológicos bizarros, foi, como prato forte de Serralves, que aconteceram inœmeras apresentações; citemos algumas entre as mais significativas: Charlemagne Palestine (1999); Tony Conrad (2000); Pauline Oliveros (2001); Paul Panhuysen e o multimedia Lee Ranaldo/ Rafael Toral com imagem de Leah Singer e João Paulo Feliciano, 2002; Yamatsuka Eye (2003); Terry Fox e Ryoji Ikeda (2004); sobretudo a instalação concerto de Alvin Lucier, "Vespers", em 2004... .
Em estética avulsa art rock estiveram presentes em Serralves e em sessões memoráveis: John Cale (2000); Ultra-red (2001); Mouse On Mars (2004); Television (2004)... .
Esta gloriosa variedade, ilustração da vida musical carismática e/ou marginal, faz de Serralves o lugar da vanguarda no sentido da iluminação, do caminhar pelos trilhos da aventura e da magnificência - mais que rememoraões, uma série de propostas musicais revolucionárias, dignas da actividade artística geral desta Fundação.
Jorge Lima Barreto
SPA 2005
(Texto originalmente publicado no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias)