Paul Flaherty é um caso à parte na construção do paradigma e na evolução do que se convencionou chamar free jazz, por muitas que sejam as estirpes e as mutações de tal Coisa, a New Thing. Nascido em 1948, em Hartford, Connecticut, durante décadas foi laboriosamente percorrendo o seu caminho sem se filiar em qualquer escola em particular, assumindo o estatuto de maverick desalinhado das dominantes correntes ornettianas, aylerianas, coltraneanas ou outras. Flaherty, o troante saxofonista e artista plástico das longas barbas brancas é feito da massa de que se constroem as lendas. Como elas, além da aura quase mítica que carrega, possui um núcleo duro de entusiastas admiradores, que no seu caso particular não assume proporções consideráveis, dada a permanência nos meios underground de um género já de si pouco dado a favorecer a criação de grandes legiões de seguidores.
Desde os anos 70 que palmilha o seu caminho, quase sempre apenas na companhia de um baterista propulsor (Randall Colbourne ou Chris Corsano), percurso testemunhado por um ror de concertos e mais de 20 discos gravados, auto-produzidos e auto-editados pela Zaabway e pela Wet Paint, objectos de culto e de procura por parte de admiradores e coleccionadores com interesse no que há de mais energético em matéria de livre-improvisação que emana do jazz.
A música de Paul Flaherty tem sido mais criticada e odiada que aceite e compreendida, mesmo pelo público do jazz, tantas vezes lesto em apontar-lhe o pecadilho de subverter as regras tomadas como imutáveis. Indiferente ao criticismo, Flaherty dá consecutivas mostras de fazer tábua rasa das visões mais ou menos estruturalistas, empolgando as audiências com o som poderoso do seu saxofone. O preço a pagar pelo atrevimento já se sabe qual é: ostracismo, desprezo e ignorância por parte dos media e do povo do jazz. Paradoxalmente ou não, quem mais tem valorizado e contribuído para o cíclico ressurgimento de Paul Flaherty tem sido o público mais ligado a certas franjas do rock, menos interessado em catalogar a música, que em ouvi?la e em respeitar o propósito honesto com que o barbas longas trabalha há décadas para sua (dele e deles) própria fruição.
Ainda há poucos anos Paul Flaherty conseguiu espantar quem anda e quem não anda a par das suas movimentações, com a edição do espantoso álbum The Ilya Tree (Boxholder Records). Com Greg Kelley, trompete; John Voigt, contrabaixo e Randal Colbourn, bateria, o saxofonista pôs em prática tudo aquilo em que musicalmente acredita – o movimento perpétuo da música espontânea e colectivamente criada, que conta com ele na linha da frente, a abrir alas sem contemplações.
Assim mesmo, vigoroso, trepidante e explosivo é o regresso de Paul Flaherty aos discos, com nova formação, o Jumala Quintet, com que em 2000 gravou Turtle Crossing, disco agora editado pela Clean Feed. Gravado à primeira e de uma assentada, que é a maneira de obter a melhor espuma, Turtle Crossing conta com Joe McPhee, Steve Swell e com a dupla rítmica John Voigt/Laurence Cook. Com estes cinco basta atar e pôr ao fumeiro.
Se se pensar num saxofonista ideal para emparceirar com Flaherty, é muito provável que esse nome venha a ser o de Joe Mcphee. Talvez por, além de trompetista, ser um dos grandes saxofonistas alto, tenor e soprano em actividade, e saber funcionar como contraponto ideal à chama e ao assalto mais vibrante do primeiro, pela via do lirismo, dos blues e do gospel. Mais que um tempero refinado, McPhee eleva espiritualmente, criando uma aura especial que atravessa a música do Jumala Quintet.
Steve Swell é outra das grandes estrelas que, inexplicavelmente, só o são num círculo restrito de admiradores da sua arte de trombonista. Há muito que provou ser um dos maiores de sempre no instrumento, ele, que encerra em si tanto o peso da história, como as setas afiadas e certeiramente apontadas em direcção ao futuro do jazz. Avaliado por estes dois parâmetros, não há seguramente outro trombonista com a importância de Swell, cujo papel em Turtle Crossing é inestimável.
John Voigt e Laurence Cook, nomes que habitualmente estão ligados um ao outro, são unha com carne nesta arte, pelos anos que já levam de mútua colaboração. Não apenas conhecem a fundo a personalidade musical e as opções estéticas de Paul Flaherty, como têm trabalhado intensivamente com os grandes desta área, como Sabir Mateen, com quem gravaram o enorme Devine Mad Love, disco que ficou para a história recente como um dos pilares fundamentais do ressurgimento do free jazz, em permanente mergulho no desconhecido.
Além da perfeita na execução, de ser clara nas ideias e propósito, articulada no seu desenvolvimento e progressão, rica de variações dinâmicas e transições, poder-se-á questionar se a música do Jumala Quintet é ou não inovadora, se desbrava caminhos nunca antes percorridos... . A resposta poderá ser simultaneamente sim e não, pelas razões que facilmente se compreenderão ao ouvi-la, enquanto trabalho de um esforçado «arqueólogo do tempo presente» (John Wolf Brennan). Porém, e sem pretender afastar o interesse académico que tal discussão possa ter, talvez valha mais a pena ouvir o que o Jumala Quintet tem para oferecer: música poderosa, sólida e extrovertida, de excepcional qualidade, que pede insistentemente para ser ouvida.
Jumala Quintet - Turtle Crossing (Clean Feed, 2005)