John Tchicai é um nome com ressonâncias a free jazz. Histórico e actual. Contrariando o fluxo normal de emigração de músicos de jazz da América para a Europa, com Tchicai aconteceu precisamente o contrário. Da Dinamarca natal, Tchicai emigrou para os EUA, onde fez a parte mais importante da sua carreira, iniciada nos conturbados anos 60. Naqueles anos a New Thing era palavra de ordem e Albert Ayler sacudia o conforto em que o bop tinha acomodado o jazz. Era o tempo de New York Eye and Ear Control e de Ascension. De New York Contemporary Five, formação capitaneada por Archie Shepp, que também integrava Don Cherry, Ted Curson, Ronnie Boykins e Sunny Murray, e do New York Art Quartet, com Roswell Rudd, Lewis Worell e Milford Graves. Em todos estes combos e projectos Tchicai deixou marcas do seu sopro vocalizado, inventividade e talento criativo.
Retornado a Copenhaga, Tchicai passou a ser uma referência fundamental do modernismo vanguardista dos anos 70 na Europa. Em 1988, de novo nos EUA, deu uma mão na estreia discográfica de Charles Gayle, Always Born (Silkheart). Daí para a frente tem alternado entre a Europa (França) e calor da cena improvisacional da Califórnia. De onde emerge Adam Lane, vindo de Los Angeles.
Nascido em 1968, em Nova Iorque, Adam Lane é um contrabaixista da nova geração de improvisadores, com muita escolarização e ampla rodagem, feita com os maiores do seu ofício e das artes da composição, entre os quais Anthony Braxton e Wadada Leo Smith. O seu som combina múltiplas referências: a forte ligação à terra que é Charles Mingus e a qualidade orquestral e de arranjo que emana de Duke Ellington e da escola europeia, que tem no esbater das convenções do jazz e da música de câmara uma das suas principais e intrínsecas características. Caso paradigmático da prática musical de Adam Lane, ex-aluno da Wesleyan University, tem sido o trabalho de escrita que tem vindo a fazer com a espantosa Full Throttle Orchestra, uma big band free de alto lá com ela. Omnívoro no gosto enquanto ouvinte, notam-se em Adam Lane hábitos de escuta diversos, que vão do rock à clássica contemporânea.
Entre S. Francisco e Nova Iorque, nesta fase da sua carreira Adam Lane não tem mãos a medir com projectos musicais e gravações de discos. Bob Rusch, produtor da CIMP, produziu discos da Full Throtlle e gravou o quarteto liderado por Lane, que deu origem ao título Fo(u)r Beeing(s), com os veteranos John Tchicai, Paul Smoker e Barry Altschul.
Depois deste disco, em Outubro de 2002, Adam Lane e John Tchicai encontraram-se de novo para gravar em casa de Rusch, reunião que deu origem a uma sessão quente e intimista, sem quaisquer vestígios de refrega free. Em DOS, dois músicos pertencentes embora a gerações muito diferentes, comungam do mesmo ideário e prática musical. Tão capazes de ouvir o que o outro tem para dizer, como de responder aos motivos que vão sendo sucessivamente lançados para a discussão em torno de melodias de sabor mais europeu que americano, Lane e Tchicai atraem o ouvinte para o centro das operações, fazendo dele um protagonista da acção. DOS é assim um disco agradável de seguir e uma boa oportunidade de, em 10 temas originais, confrontar os talentos de dois notáveis improvisadores. Um, cuja aura vem do passado, e outro que, vistos os passos seguros que dá no presente, seguramente integra o lote dos construtores do futuro do jazz. Técnica, força, confiança, autoridade e visão prospectiva não faltam a Adam Lane. Este disco é bem a prova disso mesmo. Quem descrer no futuro do jazz e preferir virar-se para a glorificação do passado, também tem aqui vários motivos de interesse estético. Swing também não falta. Até a gravação CIMP, por vezes ingrata quando se trata de captar pormenores que se perdem por falta de tratamento sonoro em pós-produção, parece querer ajudar à realização do empreendimento. Algo surpreendentemente, o som do contrabaixo apresenta‑se espesso e volumoso como convém, e não há pormenor, subtileza tímbrica ou harmónica que se perca.
Adam Lane & John tchicai - DOS (CIMP, 2003)