Jeff Kaiser Ockodektet 13 Themes for a Triskaidekaphobic (pfMENTUM)
No vasto catálogo dos medos que assolam a humanidade avulta a triscadecafobia, que outra coisa não é que o medo do número 13. Há quem não receie nada relacionado com o 13 e encare a associação dos dois algarismos como um facto sem qualquer relevância fora da aritmética. Mas também há quem se apavore só de os imaginar associados. Sem medo, ou na tentativa de sublimar a fobia enfrentando-a corajosamente, Jeff Kaiser resolveu enfrentar a questão pela via musical. Estejamos perante caso ou outro, o certo é que Kaiser, trompetista, compositor, arranjador e director de orquestra, abordou a questão com sentido de humor, talvez crente nos benefícios da terapia musical para si próprio ou para terceiros, que possam buscar alívio em 13 Themes for a Triskaidekaphobic. A brincar a brincar, a questão é levada muito a sério: são 13 os temas humoristicamente denominados segundo títulos de The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, de Laurence Sterne, novela cómica em nove volumes, publicada entre 1759 e 1767 (exemplos: My Uncle Toby's Apologetical Oration; Gravity Was an Errant Scoundrel; The Stranger's Nose Was No More Head Of, etc.), com a duração total de 1 hora, 13 minutos e 13 segundos. Rigorosamente. Para adensar o clima supersticioso (ou não), Kaiser fez afixar na capa uma citação de Carl Jung a propósito das inomináveis coisas da psique, de que o discípulo de Freud era reputado especialista: “Number helps more than anything else to bring order into the chaos of appearances”. Assim seja. Pondo de lado as considerações extra-musicais, 13 Themes for a Triskaidekaphobic está organizado como uma longa suite, executada pelo Ockodektet de Jeff Kaiser (18 elementos, como o próprio nome indica), que inclui Vinny Golia, Ernesto Diaz-Infante e cerca de dezena e meia de músicos da melhor safra da West Coast dos EUA. Kaiser mobiliza toda aquela gente na criação de uma estética baseada na livre‑improvisação moderna, em formato big band, de pendor fortementemente abstraccionista, que tanto soa às congéneres britânicas de Barry Guy, por exemplo, como às menos tradicionais orquestras de jazz norte‑americanas, privilegiando igualmente sonoridades camerísticas mais próximas da tradição musical europeia. Um organismo complexo, que executa música de elevada complexidade na sua estruturação e desenvolvimento.
A obra chega a ser impressionante na sua magnitude, tanto ao nível dos efeitos de massa e arranjos para diferentes conjuntos instrumentais, como nos detalhes dos solos, com especial destaque para os sopros (a secção é generosa e inclui saxofones tenor, alto e soprano; clarinetes; flautas; trompetes; trombones e tuba), que recolhem a parte de leão.
Jeff Kaiser compõe música de difícil abordagem, que requer da parte do ouvinte uma atitude de audição construtiva, isto é, apela à concentração e ao empenhamento necessários para acompanhar cada momento criativo, tarefa nada ligeira, se se considerar que o programa é deveras ambicioso e por vezes algo pesado. Recomenda-se que se comece por audições parcelares, à fatia, antes do abalançar à totalidade da sequência, para a qual é preciso fôlego e algum jogging auditivo. Se é caso de se ter as orelhas robustecidas por muito fitness, e se não se é supersticioso, o desafio de 13 Themes for a Triskaidekaphobic pode ser altamente estimulante e satisfatório. Cruzes canhoto!
Jeff Kaiser Ockodektet - Kaiser/Diaz-Infante Sextet The Alchemical Mass/Suite Solutio (pfMENTUM)
Fora de brincadeiras, e num registo ideológico – que não musical – muito mais sério, Jeff Kaiser brindou-nos uns tempos depois de 13 Themes for a Triskaidekaphobic, com duas belas peças musicais: The Alchemical Mass, com o Jeff Kaiser Ockodektet e o ensemble vocal Ojai Camerata, e Suite Solutio, com o Kaiser/Diaz-Infante Sextet.
The Alchemical Mass é, como o nome indica, uma missa (Introitus; Kyrie; Collecta e Gloria; Epistola e Graduale; Offertorium; Ave Maria e Commune), que, inspirada na homónima, escrita algures entre 1490 e 1516, funde a forma clássica da missa com elementos de uma certa religiosidade primitivista, presentes através do canto (Ojai Camerata) e reforçadas com os motivos afro‑exóticos que dão à música um colorido fascinante, simultaneamente erudito e popular. Kaiser é o homem certo para este tipo de grandes produções de new music, em que os aspectos convencionais se articulam com um tipo de escrita inovadora e execução experimental.
A segunda peça do disco, interpretada pelo Kaiser/Diaz-Infante Sextet (Jeff Kaiser, Ernesto Diaz-Infante, Scot Ray, Jim Connolly, Brad Dutz, Richie West) é muito diferente da missa. O que aqui temos é uma gravação de 2001, incluída no mesmo CD. Ainda bem que Kaiser tomou a decisão de associar ambas as peças, oportunidade soberana de escutar um sexteto de jazz (trompete, guitarra, trombone, contrabaixo e bateria e percussão) a la Kaiser/Diaz‑Infante, que improvisa colectivamente dentro de um estilo free‑bop experimental, servido por boas composições, rasgos de Kaiser e demais pessoal, com destaque para as guitarradas de Diaz-Infante, que infundem respeito, tal a gana com que trabalha as seis cordas. Comum a ambas as peças é também o tom sombrio que as envolve e lhes confere uma aura de mistério, algo que emerge de tempos imemoriais e se desenrola em directo à nossa frente. Belo e arrepiante.