Alguns discos (
Whishful Thinking,
Snug as a Gun…) e vários grupos depois (
Wishful Thinking,
IMI Kollektief, e
DIGGIN’), a certa altura percebia-se que devia estar prestes a nascer o
opus magnum da ainda breve carreira discográfica de
Alípio Carvalho Neto. E aí está,
The Perfume Comes Before the Flower, disco de 2007 (
Clean Feed), nascido para o mundo com a força das coisas ingentes e com a urgência de afirmar um som maduro, articulado e processado através de uma linguagem musical moderna e com ideias assertivas, algo que poucos improvisadores, do jazz e de fora dele, podem reclamar para si com inteira propriedade.
The Perfume Comes Before the Flower é fruto de decisões claras (e clarividentes), de muita prática quotidiana, estudo, trabalho e meditação. E talento. Que aqui existe a rodos, visto que para além do saxofonista, participam no quarteto americano de
Alípio C Neto, quatro dos melhores improvisadores da actualidade, de Nova Iorque e de todo o mundo: o trompetista
Herb Robertson, o contrabaixista
Ken Filiano, e o baterista
Michael T. A. Thompson, creditando-se do tubista californiano
Ben Stapp em três das cinco faixas do disco (1.
the perfume comes before - early news; 2.
the will – nissarana; 3.
the flower – aboio; 4.
the pure experience – sertão; 5.
la réalité - dancing cosmologies). Pessoalmente, tive o privilégio de ter escutado este disco ainda em cru, acabado de chegar de Nova Iorque onde tinha sido gravado. De imediato me impressionou a força do quarteto, a concentração expositiva e o bem tricotado das composições, propositadamente flexíveis nas juntas para deixar entrar e sair a torrente da improvisação. Sou de há anos um apreciador do som de saxofone tenor de Alípio. Gosto das suas tonalidades quentes, “tropicais sem serem tropicalistas”, como disse um dia em entrevista, das arestas por limar, do poder do som cru, que se dá tão bem no desenho de uma melodia – e Alípio sabe escrever uma melodia! – como no reforço das complexas estruturas harmónicas, ou nos solos, reveladores de aromas e essências intemporais, património genético onde reconheço vestígios de
Fank Lowe,
Pharoah Sanders ou
John Gilmore. Difícil, se não mesmo impossível, se torna fazer sobressair individualidades do seio da banda, unidade perfeita na diversidade que encerra, que assim se mostra nos tempos de entrada e de saída, fulminante no ataque, sem medo de arriscar tudo na improvisação, na garra com que se atiram à luta, na atitude criativa, solidez, balanço, variação dinâmica, com o à vontade próprio duma
working band muito rodada (que não teve tempo nem propósito de o ser, pois foi chegar, mostrar as composições, trocar uma ideias e gravar), cujos processos criativos flúem com assinalável eficácia e naturalidade. Que dizer, que ainda não tivesse sido dito, sobre o sopro luminoso e coruscante de
Herb Roberston; a fantasia e a precisão de
Ken Filiano, no
pizicatto como no arco; a espessura e a densidade da tuba de
Ben Stapp, o
drumming incomparável de
T. A. Thompson... O
drive colectivo é potente e descontraído, cheio de manha e sabedoria, particularmente assinalável quando os quatro (ou cinco) se lançam declive abaixo, velocidade nas curvas apertadas e nas rampas sinuosas, para, chegados ao fundo, descomprimir e iniciar nova subida até ao cume mais alto, ficando-se sem saber se o perfume chega antes da flor, como o título sugere, ou se é a flor, que viçosa, nasce primeiro e exala esta irresistível fragrância. O que importa é que, chegado o termo da jornada, apetece aspirar de novo e partir para outra aventura nesta fantástica montanha russa de sons, cores e aromas. Melhor que tudo é ouvir e deixar-se maravilhar e comover ante tamanha “oferta”. Dito isto,
The Perfume Comes Before the Flower é um disco muito bom, de intenso prazer físico e emocional.