PIANO, PIANíSSIMO...
Sendo que a Musicologia é o estudo profundo e superior da Música sob todos ou especiais aspectos, procuraremos uma observação dialéctica e necessária para rebater a babelização da linguagem musical.
É certamente uma crise de valores tendente à descaracterização das músicas em eventos nos mais considerados locais para a arte dos sons, agora até já detectáveis nas modalidades de interesseiro aluguer ou magnânima cedência de espaço em marcas as mais absolutamente prestigiantes...
Neste texto procura-se uma reflexão sobre um situacionismo musical, confrontar o excesso de ecletismo. Não há uma Música mas várias músicas, cada uma com o seu conceptualismo, a sua técnica, a sua historicidade; com talentosos e imaginativos criadores em todos os planos - o que se pretende denunciar é a rebarbativa miscegenização perpretada por músicos e compositores que não dominam devidamente a genuína semiologia e estão alheios ao seu sentido profundo sentido, à sua semântica - o fado é destrinçável de qualquer outra música tradicional/popular; esvai-se o sentimento, o imaginário; no fado há um leque instrumental impróprio (exs. bateria, DJ, computador ou sintetizador).
A música barroca caracteriza-se por uma estruturação específica e corresponde a uma cronologia própria; mantém-se viva pelo virtuosismo dos seus intérpretes; há o humor como na recuperação de sintagmas de Beethoven por Kagel; há uma gramatologia que autoriza a reconsideração do passado como na obra de Stravinsky sobre Gesualdo...
Acontece que ocorrem nas programações musicais (não em todas, evidentemente) notórios casos de concocção estilística e tipológica, fait divers, miscelânea de exibições alegadamente pluriculturais, com elevados desníveis qualitativos - música ora pegagógica, ora etária, ora convencional, ora pragmática; feira de vaidades sem o conceito de Música como Arte.
Consideremos duas espécies de pianistas: o intérprete, que realiza o que foi escrito pelo compositor e, o improvisador, cujo jogo se desinibe da composição, pertinente na maioria das musicas orais do mundo, sem o domínio da escrita, privilégio da improvisação - pode haver criações mistas. A composição escrita evoluiu desde o serialismo para uma cientificidade que progressivamente dispensava o factor da improvisação.
Glorificam-se músicos portugueses de real qualidade, muito requisitados, que, com todo a legitimidade, respondem, na sua melhor maneira profissional, às diversificadas solicitações (exs: Mário Laginha e Bernardo Sassetti); ora trata-se duma estirpe de artistas que não são minimamente especialistas na interpretação dos clássicos nem estimáveis improvisadores no âmbito da música contemporânea avant; este tipo de executantes (de chefes de orquestra a solistas) está votado à variedade de execuções e a execuções da variedade, com grande fôlego poliestilistíco; ...serve de exemplo: o pianista americano Uri Caine, muito preferido em certames nacionais: um insinuante solista de jazz neomoderno apropria-se de Bach, Wagner, Mahler, vulgarizando uma linguagem superior, reificada por processos pobres de transcrição; obras criadas pelo génio são transladadas para o divertimento - pode citar-se, num plano global, anterior e similarmente, o vetusto "play Bach" de Jacques Loussier, o teclado eruditão de Keith Jarrett a emular os clássicos..., etc...; propostas editoriais para a venda milionária... com a inerente perda de valores históricos e artísticos....uma corrente da música para computador legitimamente reverifica todas as músicas, mas o seu projecto é híbrido e realizado num meio tecnológico.
Há uma outra e nova forma de improvisar num conceito de "obra aberta" e de "obra de Arte", que escapa a estes artesãos pelo seu vanguardismo conceptual - o mesmo se deve denunciar e negar nas investidas funcionais anódinas em interarte (artes plásticas, dança, teatro, literatura, esta então levada aos limites da usura) e multimedia (foto, cinema, instalação, video, assumidas como categorias fugitivas, etc...)...isto para não especular sobre produções ditas "multiculturais" a descambar na polissemia etno- degradante - cabe no mesmo saco o fado, o Ravel, o samba, o "jazz", o ressacado rap, o Zeca Afonso, o Ravi Shankar, a morna, o Lopes-Graça, o minimalismo, o Xenakis, o popular pimba, o rasca Abrunhosa, o globalizado hip hop. etc ...; ...é a perda do discernimento, mercadoria espectacular com vistosos resultados para certos operadores culturais com assento nas mais diversas instituições... mas mais grave: é o desaparecimento de valores (éticos e estéticos) a despistar um público apreciador do verdadeiro.
Em contrapartida, pelo lado negativo da ruína pósmodernista, proliferam rábulas mascaradas por alegações diletantes de interarte, multimedia, as quais não passam da rapsódia e da música funcional; arte afinal sem filosofia e inovação; ... indigitá-las como representantes da nova música ou do experimentalismo torna aquilo que devia ser construtivo numa manobra dilatória.
A talhe de foice podemos também falar da leviandade com que agora se interpreta grandes compositores e a facilidade com que se alistam nomes de génios da Musica ao lado de arrivistas ou anódinos musicógrafos, pois, similarmente, não estamos a ouvir Bartok mas qualquer refluxo sonoro desfigurador e sem autenticidade, e o copista vulgar passa por criador com talento... a apologia do plágio.É um mister detectar os simulacros melódicos na música ligeira, fenómeno hoje efeito de pudim instantâneo no lap top vulgarizado nesta área musical, mas trabalho enfadonho e infinitivo.
Oculta-se a criatividade daqueles que são os músicos de direito, que infelizmente e por lapsos e deliberações autocráticas tem tão poucos amadores - a música é dos músicos e as instituições para a Música não se podem arrogar com posturas censórias e silenciar a produção artistica apenas por motivos demagógicos, a deitar o olho à propaganda na TV e nos media em geral, amnistiadas por lamurientas restrições orçamentais...a voracidade é sôfrega.
São denotadamente poucos e com todo direito a mostrar a Arte e as ideias...com o risco até de elas não serem compreendidas por espíritos mais tacanhos e serem minoritárias no seu público.
Os músicos (todos eles e de todos os quadrantes) precisam comunicar o seu trabalho e não se pode deixar passar decisões impróprias e arbitrárias que os envolvam em charadas do entretenimento e os atirem para o desemprego e a incomunicabilidade ou ao serviço compulsivo de sobrevivência.
.... Música é Cultura.
Jorge Lima Barreto