Posto da maneira mais simples, ou a coisa funciona na complexidade do todo – enquanto conceito, processo e resultado – ou, se se verificam apenas algumas das partes que o compõem, há perdas a lamentar. O desafio para os criadores da música improvisada hoje, para além do pressuposto domínio das técnicas instrumentais conhecidas ou acabadas de inventar (e de, igualmente importante, ter sólidas bases de cultura musical, ouvido grande e omnívoro, de preferência), é o de conseguir preencher aquela tríade, quando se trata de compor em tempo real. Improvisação como processo de trabalho, ferramenta criativa e género musical com autonomia própria, segue o método da composição instantânea, aquele que liga pensamento e execução num mesmo e simultâneo acto criativo. O conceito nasce da fusão entre sinais reconhecíveis em diferentes géneros musicais e correntes estéticas. Surface, subtitulado For Alto, Baritone and Strings, disco de 2007 de um quarteto luso-americano liderado pelo saxofonista Rodrigo Amado, assinala as três cruzes nos espaços em branco. Doze temas, cinco deles em forma de suite, compõem os painéis desta interessante exposição, que tanto vai beber à idiossincrasia própria de cada um dos intervenientes: Rodrigo Amado (saxofones barítono e alto), Carlos Zíngaro (violino), Tomas Ulrich (violoncelo) e Ken Filiano (contrabaixo), comunicam entre si apenas por sinais sonoros e instinto natural, em detrimento de quaisquer estratégias delineadas e acertadas em momento prévio. É de acordo com este figurino que, em Surface, se assiste à execução prática do que se poderia designar por sã convivência entre elementos da escrita contemporânea de tradição europeia, do jazz (e ele swinga!, para quem dispense e não dispense, como bem se ouve em The City) e uma pitada de world, “fórmula” que já havia sido experimentada em The Space Between, disco gravado em 2002 com os agora repetentes Carlos Zíngaro e Ken Filiano, dois dos maiores expoentes dos respectivos instrumentos, a nível mundial. The Space Between pode muito bem ter servido de ponto de partida para Surface, à vista do alfobre de ideias que o primeiro encontro deixara perceber, tantas eram as pontas por onde pegar e desenvolver. Foi isso que aconteceu nesta segunda ida para estúdio, em Fevereiro de 2006, quatro anos passados, sessão a que acresceu a participação do novaiorquino Tomas Ulrich, músico que faz a ponte entre as duas grandes matrizes aqui dissolvidas: o jazz e a new music. Quatro músicos põem em conjunto a comum capacidade de se embrenharem profundamente no som, de ouvir e reagir aos estímulos, de se complementarem enquanto cúmplices, exprimir a sua individualidade em proveito do conjunto e evitar o risco de rebater lugares comuns.
A atenção está concentrada no detalhe, sem que tal signifique perder a noção de enquadramento das partes num plano mais vasto. Em campo aberto, jogam-se contrastes e aproximações entre diferentes perspectivas micro e macro, com cuidado equilíbrio na gama de tonalidades, compondo paisagens que se abrem numa imensidão a perder de vista. A toada de Surface é suave e contemplativa, pontualmente alterada quando a “conversa” ganha jeito de se empolgar e libertar tensão acumulada. Sente-se a autenticidade e o empenhamento no deitar de mãos à obra, qualificável como de boa música improvisada moderna. O que não é dizer de menos sobre um disco sólido e maduro como Surface. Edição da European Echoes, onde já saiu Teatro, do trio de Rodrigo Amado com Kent Kessler e Paal Nielsen-Love.