A música é uma arma. Mark Whitecage e a sua Bi-Costal Orchestra levam a ideia a sério, engajados contra o bushismo enquanto ideologia e prática política. Afinal, contra o que alguns fazedores de opinião nos querem incutir, há norte-americanos (e não apenas o resto do Mundo…) que, não sendo “anti-americanos”, não apoiam o que o governo do seu país tem andado a fazer dentro e fora de portas nos últimos cinco anos. Na verdade, apesar dos anos de chumbo que caíram sobre a América, há gente que não perdeu a lucidez e a sanidade mental para perceber e denunciar a tragédia real e iminente. É este o ponto de partida de BushWacked: A Spoken Opera, a mais recente realização do saxofonista e clarinetista Mark Whitecage (n. 1937), com Rozanne Levine (clarinetes) Scott Steele (guitarra), Bill Larimer (piano), e Robert Mahaffay (bateria), músicos política e socialmente empenhados, que não se conformam com a inevitabilidade da guerra do Iraque, a tortura e prisão sem direitos de Guantanamo, e com a interminável série de desmandos de uma Administração que só pode fazer esperar que um dia a “boa América” – aquela que em muitos e importantes momentos da História se deu a conhecer e foi determinante para o progresso da Humanidade – possa regressar de novo à cena internacional, livre da seita de fanáticos que delapida recursos em nome de uma putativa luta contra o terrorismo. O mundo está melhor e mais seguro com Bush no poder? A resposta pode encontrar-se espelhada nos últimos cinco anos, período durante o qual a América, única superpotência mundial, tem vindo a ser dirigida por gente cuja praxis subverte tudo o que está na base do nascimento da Democracia americana, o oposto do legado dos "Founding Fathers". Também por isso este é um disco de indignação e repúdio pelo que Whitecage considera o estado perverso e maléfico a que Bush conduziu a nação, os três dês de “deadly dada debacle”, como alguém lhe chamou.
O libreto é constituído por textos avulso compilados a partir de jornais e revistas (Harper’s Magazine, The Nation, The Progressive Populist, etc), como o enunciado de Rozanne Levine logo a abrir, In Our Name, seguido da apresentação do saldo da actividade do Attorney General John Ashcroft, que, dos 5000 presos por suspeita de terrorismo, não conseguiu obter uma única condenação (0 for 5000, recitação sobre fundo de New Orleans, a evocar a tragédia de que o Presidente não quis saber…). O disco prossegue no mesmo tom de denúncia e indignação ao longo de Follow the Money, de Who’s the War For (poema de Jeanne Lee, escrito em 1990). Fool Me Twice, Shame on Me, é um “instrumental” titulado numa referência óbvia à reeleição da figura que, à primeira, aldrabou a votação na Florida, e à segunda mentiu sobre as armas de destruição em massa, que as havia aos molhos no Iraque, como se veio a saber.
Musicalmente, o disco é muito forte, à altura do tema e do ardor que os intervenientes colocam no seu tratamento e denúncia. É mesmo uma das peças musicais de maior envergadura que Mark Whitecage concebeu e produziu nos 50 anos que leva de carreira. Porém, com esta nova formação da Bi-Costal Orchestra, o saxofonista de New Jersey não se fica pelo panfleto contra o que designa por Bush Crime Family. Independentemente das palavras e das finalidades políticas que elas pretendem servir, embora totalmente filiada na tradição da protest song norte-americana, BushWacked: A Spoken Opera (Acoustics Records) é uma obra essencialmente musical, com todo o empenho posto ao serviço da criação de um discurso onde tradição e inovação (as duas forças motrizes de Mr. Whitecage) confluem para produzir um trabalho digno, intenso e cheio de grandes momentos de improvisação colectiva, gosto e estilo variado, fora dos cânones em que o jazz do momento se desenvolve, a que não falta uma boa dose de humor. Não se trata pois de música escondida atrás de palavras recitadas ou a servir-lhe de fundo sonoro. Noutro sentido, palavras e música ecoam umas nas outras, valorizam-se reciprocamente e embalam-se em tonalidades fortes de freebop, swing e improvisação em partes equivalentes.
BushWacked é um épico sócio-político-musical da América apesar de Bush, um contributo válido para o debate em curso, feito a pensar nos tempos que hão-de vir, necessariamente melhores. Já faltou mais.