7 horas na Praia do Guincho. Novembro, 1, véspera de dia dos Mortos, o vento amainou. Pelo areal adentro sigo para Norte, único ponto móvel no meio do deserto. Único até apareceres, Cão. Vem daí que somos dois. Queres ouvir isto? O que é? Love me Two Times, do nmperign com Jason Lescaleet. Não deve ser o que mais aprecias. Morrer na praia, Cão. A esta hora. A uma hora qualquer. Revejo a galeria dos que me morreram. Nos últimos anos foram cinco. Colecta de um por ano. A mais recente foi a Virgínia, em Setembro. Passou para o lado de lá com aviso, mas não foi por isso que custou menos. Em paz, se assim se pode dizer. Love Me two Times. Preferes sweet music? Não trouxe. Carreguei o mp3 só com munições de electrónica e free improv. A seguir vem Paul Flaherty, saxofone tenor solo. Uhm... também não. Punhas-te para aí a uivar à lua, com certeza. Ela ainda ali está, a vigiar o início da manhã. Experimenta estes sons microscópicos. Repara que tem tudo a ver com a paisagem natural à nossa volta: espaços amplos, notas longas, há pedras, sal e areia como aquela mais solta lá em cima, que voa com o vento e pica nas pernas como agulhas; ondas como as do mar do Guincho; lixo electrónico como este emaranhado de garrafas de plástico, paus e redes de pesca. O que eles fazem é confeccionar arte com estes ingredientes. Repara, não há um único beat - mas bate mais forte que corações apaixonados. Não te interessa, já percebi. Olha as gaivotas lá ao fundo. Não corras, que assim levantam voo. Lembras-te de Os Pescadores, de Raul Brandão? Duvido que Jason Lescallet, Bhob Rainey, ou Greg Kelley tenham alguma vez lido Brandão, mas chega a parecer que sim. Ficaste para trás? Tens a certeza de que não queres ouvir isto?