Não é só de agora. Kali. Z. Fasteau, anda habitualmente nas melhores companhias. Desde tenra idade que assim tem sido, veja-se a debutação com o grande e a caminho do esquecimento, Donald Rafael Garrett (não consta que fosse parente, sequer afastado, do nosso Almeida Garrett, poeta das Folhas Caídas e prosador de outras grandes Viagens), contrabaixista, menos referenciado como clarinetista, companheiro da revolução coltraneana (exemplifico com dois títulos paradigmáticos, Kulu Se Mama e Live in Seattle) e cúmplice do visionarismo colorido do grande Rahsaan Roland Kirk, e amigo dilecto de Zusaan Kali Fasteau (era assim que a menina assinava por alturas de 71) Garrett nos tempos gloriosos dos primeiros Esp-Disk. Esta casa de discos, cuja interessante divisa “the artists alone decide what you will hear” – coisa estranha impossível pelos padrões industriais de hoje –, era dirigida pelo advogado e produtor Bernard Stollman, que lhes deitou olhos e ouvidos e resolveu acolher o projecto o que veio a ficar conhecido como The Sea Ensemble (Fasteau & Garrett), de onde saiu o título We Move Together (1974), e mais tarde Memoirs of a Dream (duplo de 1975-77), então já na editora por si fundada e até hoje mantida pela multi-instrumentista norte-americana (Donald Rafael Garrett, a terra lhe seja leve, faleceu em 1989), a Flying Note Records. Tudo isto é história e boa história, essencial para perceber e sentir o fascínio de Zusaan pelo nomadismo cultural e geográfico (depois dos anos de formação musical, viveu anos a fio na índia e na Turquia, com estadias várias numa série de ouros países asiáticos e europeus) e por uma vasta área musical que viria décadas mais tarde a ser designada pelo substantivo colectivo desastrado de world music, que só piora quando traduzido para música do mundo.
Rótulos à parte, a obra de Kali Z. tem sido quase sempre do outro mundo, numa dupla e alternativa acepção, pois ou é realmente apreciada e justamente considerada de altíssimo nível criativo (Sun Ra gostava dela que se pelava), ou é sobranceiramente ignorada pela dita comunidade do jazz, que a olha como produto bizarro ou simplesmente merecedor de uma sucinta nota de rodapé.
Compreende-se: a senhora vem marcada com o “opróbio” do free jazz, um valor muito negativo nestes tempos de contra-reforma comandada globalmente pela multinacional Marsalis & Crouch, Lincoln Center, Inc., que, entre outras coisas, auto-proclama o direito de determinar urbi et orbi, “isto é jazz, aquilo não é, e o resto logo se vê”. Apesar da política de homogeneização, pasteurização e liofilização levada a cabo pelos poderes industrio-mediáticos dominantes, num processo crescente de downbeatalização do jazz, continua felizmente a haver gente teimosa e avessa aos modismos prevalecentes, que persiste em resistir ao formato standard com que a indústria nos brinda, e com o qual vai enchendo os cofres, de fusão em fusão, enquanto chora as quebras de vendas e os downloads dos putos e mais crescidinhos. Que pena que eu tenho.
Kali Z. Fasteau tem novo disco. Novinho, acabado de sair do forno. Motivo de celebração? Claro, e já digo porquê. Entretanto, as boas companhias dos últimos 40 anos têm variado bastante, é certo, mas são sempre de altíssimo nível. Foi assim no disco anterior a este, Making Waves, em que o horror da capa (Kali, please, I beg you, continua a tocar e deixa o design gráfico para quem tenha jeito, é o que te peço encarecidamente) era inversamente proporcional à qualidade da música nele contida, tocada por Kidd Jordan, Bobby Few e Sirone; assim continua a ser em People of the Ninht (o título pretende homenagear a heroicidade das pessoas do Ninth Ward of New Orleans, a gente de Kidd Jordan), que além do repetente saxofonista tenor, tem o aliciante especial de trazer Michael T. A. Thompson à bateria, consumadamente um dos grandes das peles e pratos no activo. E que trio este é! Encontrada a equipa, foram para estúdio a 25 de Setembro de 2005, na ressaca do furacão Katrina, ainda sob os efeitos emocionais da destruição da cidade de New Orleans e da zona envolvente, terra do Professor Jordan, cuja família sofreu directamente com as duas catástrofes, a do furacão herself (já que tem nome feminino) e a do abandono a que foram votados pelas autoridades locais, regionais e nacionais, com Bush, claro, à cabeça (a terceira...). Kidd Jordan, T. A. Thompson e Kali, ela própria uma antiga residente em New Orleans, onde em tempos havia sido militante do Congress of Racial Equality, exorcizam a dor através da do potencial de healing force of the Universe (Albert Ayler) da música criada e partilhada em conjunto. Kali Z. em piano, violoncelo, saxofone soprano, nai (instrumento oriental da família das flautas, com palheta) e aquasonic (jarro de metal com água, tocado com arco), e Kidd, som quente, cheio e poderoso de saxofone tenor, o maior da Crescent City, servidos ambos pela mestria rítmica de T. A., e pelo seu conceito de soundrhytium, que hei-de explicar em próxima oportunidade.
Para meu gosto e do conhecimento aprofundado que me gabo de ter da obra de Kali Z. Fasteau, com discos importantes, como sejam Worlds Beyond Words, Memoirs of a Dream, Prophecy, Sensual Hearing, Comraderie, Vivid, Oneness ou Making Waves, todos na Flying Note Records, sem menosprezo por aqueles títulos que compõem uma obra com elevado valor artístico, arrisco afirmar que este é o melhor disco da artista, o mais maduro, concentrado e profundo que realizou até hoje. Aquele que melhor combina a força espiritual da sua música, a discreta etnicidade e a extraordinária musicalidade, graça, liberdade e agilidade que resulta da interacção de três músicos, mais que compatíveis, em comunhão plena e entrega total. Palavras para quê?! Aposto que John Coltrane, Sun Ra e Don Cherry não desdenhariam de People of the Ninth (New Orleans and the Hurricane 2005). Já ganhei!