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Em lugar de enunciarem a sequência em directo dos seus mais recentes discos,
Space, de
Rafael Toral, e
The Tone Gardens, de
Sei Miguel, os músicos optaram inteligentemente por encenar aquela apresentação, pondo ênfase na confluência dos dois trabalhos, mostrando de forma mais evidente o modo como os dois sistemas e mundos sonoros são afinal afins e tributários um do outro (movimentos
Garden e
Space, a que seguiria o passo seguint
e,
Beyond).
Transversal aos três momentos foi a percussão de César Burago, disposta sobre uma base de “dead radio” (em sintonia de chuva fina, constante e persistente), logo no duo de abertura com Sei Miguel em trompete de bolso, a trabalhar sobre diversos tons de madeira, primeiro com e depois sem surdina.
Dado o mote inicial, sucederam-se os quadros da exposição, o segundo dos quais com Rafael Toral já em palco, munido das suas luvas midi com terminais electrónicos e sensores ópticos, artefacto que faz parte do seu Space Program, com o qual explorou a dimensão espacial e visual (som e luz em movimento), com sugestões de incidência sobre processos criativos sofisticados de base electrónica. Ondas micro e macro numa interessante articulação entre o silêncio (ausência de som) e o acontecimento sonoro, temperada por amplos espaços para a respiração.
Nas peças seguintes o trio foi acrescentado de
Fala Mariam, em trombone alto, e
Pedro Lourenço, em baixo eléctrico. Já sem as luvas, Toral optou pelo uso alternativo de um artefacto electrónico que não sei nomear, de onde se soltavam electro-erupções plasticamente moldadas. Com a entrada do segundo sopro, a música ganhou outra intensidade e um maior equilíbrio nas formas e estados. Do gasoso inicial, passa-se sucessivamente ao estado sólido, alternando o som entre este e o estado líquido.
Este benefício resulta essencialmente do acrescento que o diálogo trompete trombone permitiu estabelecer por cima da manta intermitente da percussão minimalista de
César Burago, e das linhas ascendentes e descendentes do insinuante baixo eléctrico de
Pedro Lourenço, entrecruzadas pelas formas angulosas da electrónica. Daqui para afrente seria este tipo de preparo e de combustível que iria fazer propulsionar o quinteto, em regime de baixo volume e temperatura branda, até final.
Globalmente, o concerto apresentou uma unidade feita de três partes, uma proposta assaz elaborada, que se expande em sons parentes e outros afins do jazz, que na sua coerência total formam um conjunto sonoro cuja arquitectura é simultaneamente desafiante e agradável de apreender.
Há aqui um conceito deveras interessante, um pano de fundo, se se quiser, que deriva do jazz (o trompete de Sei Miguel fala as línguas de Bill Dixon, Miles Davis e Don Cherry), dele se afastou e que procura o caminho de regresso a casa. Só que, quando o encontra, já outras são as dimensões espacial e temporal, e não há como resolver o problema. Mas há que tentar, através de uma prática e de uma aprendizagem colectivas, dos músicos entre si e com o público, num todo integrado. É isso, na minha perspectiva, o que Sei Miguel e Rafael Toral têm procurado fazer. E é nessa lógica que se inscreve Beyond, a terceira figura do tríptico que se iniciara com Garden e Space – janela de onde se espreita a invenção que está para vir.
Fotos © Crista (clique para aumentar). Agradecimentos são devidos.