Foi há relativamente pouco tempo. Apenas em 2004 tive o ensejo de ouvir Evan Parker tocar temas, isto é, a improvisar num contexto de acordes pré-definidos. Foi com Dave Greene, contrabaixista britânico, que naquele ano desafiou Parker para tocar um programa que incluía composições suas e de Thelonious Monk, em quarteto, com Iain Dixon, saxofone e clarinete, e Gene Calderazzo, bateria, membros do Dave Greene Trio. A sessão foi gravada no Gateway Studio de Londres e emitida pela BBC Radio 3. Não estou certo de alguma vez ter sido editada e se, enquanto tal, consta da imensa discografia que o saxofonista britânico tem vindo a registar ao longo das quatro últimas décadas. Também com Kenny Wheeler, trompetista e compositor que Evan Parker admira mais que todos no presente (assim o disse em discurso directo durante um debate realizado em anterior edição do Jazz em Agosto) teve algumas colaborações com base em material pré-escrito. Tirando um ou outro episódio isolado, todas as outras intervenções a que assisti ou a que tive acesso remoto encontraram o saxofonista em ambiente 100% improv, fosse a solo, duo, trio, quarteto, e daí para a frente, o que se quisesse.
Não estava pois à espera de reencontrar Evan Parker (foto: Caroline Forbes), menos ainda a solo, a tocar dentro (e fora) de temas, alguns deles fazendo parte do cancioneiro tradicional do Jazz, Segundo as leis idealizadas em tempos idos, Evan Parker enunciou as melodias segundo os códigos do género, prestando simultaneamente uma homenagem a criadores do Jazz (Monk, Coltrane) e dando a revelar o seu fascínio com a temática por eles tratada, necessariamente segundo outros processos. Uma vez mais se pôde assistir à magnífica exposição do seu “movimento perpétuo” em tempo real, a impressionante habilidade técnica e mecânica, o raciocínio rápido e fulgurante, a capacidade de sobrepor várias linhas melódicas em simultâneo sem perder o fio à da narrativa, enfim, arte e artifício juntas numa só realidade - o grande acervo técnico e emocional de um saxofonista, que apenas por distracção se pode apelidar de frio e cerebral. À parte estes aspectos, que confluem para compor a sua persona enquanto saxofonista, Parker sabe usar os cânones e as convenções para, invocando os seus símbolos e fantasmas, ir ao âmago da estrutura, desmontá-la em mil pedaços e remontá-la novamente em directo, servindo-se de uma ferramenta quádrupla: talento, imaginação, capacidade de emocionar e prodigioso apetrechamento técnico. Não se deixou, porém, ficar por aqui: quem soube, através dele e do saxofone soprano, ouviu as vozes de John Coltrane, Steve Lacy, Lol Coxhill, Roscoe Mitchell e até Sidney Bechet. Actuação memorável, a arrumar no arquivo vivo da memória.
Evan Parker solo
Sexta-feira, 4 Ago 2006, 18:30 - Auditório Dois da Fundação Gulbenkian