A escala é monumental, a energia avassaladora, a emoção quase esmaga o ouvinte de quem se requer considerável fôlego, abertura de espírito e disponibilidade mental para se deixar transportar na imensa trip que constitui “Ascension”, opus magum de John Coltrane. A sua realização mais audaciosa, o cume mais alto do Everest que construiu ao longo de uma década – a Paixão segundo Coltrane, considerada por parte da crítica do tempo (1965) e de agora como algo de inaudível. “Ascension” não se trata apenas de um tratado sobre a emoção em estado bruto; a obra condensa a experiência, a procura incessante, as crenças espirituais, as obsessões e o ideário de um homem e da sua música revolucionária, que tem inspirado legiões de improvisadores em todo o mundo.
O trabalho a que se propuseram os quatro cavaleiros do ROVA Saxophone Quartet (Bruce Ackley, Steve Adams, Jon Raskin e Larry Ochs) a que juntaram um distinto grupo de improvisadores para o colossal empreendimento – Rova::Orkestrova presents John Coltrane's Electric Ascension – traduziu-se num passo enorme e de elevado risco, pois estava em causa a ideia de, através de novos arranjos, reinterpretar uma das mais prodigiosas concentrações de sons articulados do Jazz do Séc. XX. E outro passo mais à frente relativamente à primeira versão, datada de 1995 (John Coltrane's Ascension - Rova Saxophone Quartet, edição Black Saint), pelo lado apoteótico e pela descida aos subterrâneos mais profundos que a equipa de exploradores dirigida por Larry Ochs logrou conseguir. A aposta, tal se pôde constatar em 2003, quando o projecto foi finalmente estreado e registado em disco, resultou inteiramente ganha e sucessivamente confirmada de então para cá numa série de concertos na qual se incluiu a abertura da edição de 2006 do Jazz em Agosto, Festival Internacional de Jazz da Fundação Calouste Gulbenkian, que este ano “celebra a vertente histórica de John Coltrane, nascido em 1926 e desaparecido em 1967, uma presença que o jazz contemporâneo faz perdurar” (do Programa). No palco do Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação, co-dirigida por Jon Raskin e Larry Ochs, tivemos uma versão de Rova:Arkestrova que, além do quarteto de saxofones nas variantes soprano, alto, barítono e tenor, incluiu o japonês Otomo Yoshihide (Ground Zero, New Jazz Orchestra/Ensemble/Quintet), o guitarrista californiano de Los Angeles, Nels Cline (Wilco, Nels Cline Singers, etc); Fred Frith, guitarrista exímio, aqui em baixo eléctrico, tal como no Naked City, de John Zorn), a violinista Carla Kihlstedt (Tin Hat, Sleepy Time Gorilla Museum, John Zorn, Roscoe Mitchell, etc); uma segundo violino, Jenny Scheinman (Bill Frisell, Cecil Taylor). Fora do baralho de 2003 mas fazendo parte do line-up de 2006, Andrea Parkins (acordeão e samplers) e o baterista Tom Rainey – membros do trio que, com Nels Cline, a 4 de Agosto actua à mesma hora e no mesmo local –, o trompetista japonês Natsuki Tamura e o mestre alemão da improvisação electrónica Thomas Lehn, que já haviam participado no projecto em 2005, numa presentação em Wels, Áustria.
Entre as investidas potentes do colectivo de 13 músicos, que chegaram a alturas tamanhas, minuciosas construções se foram erguendo, montículos de sons electrónicos agitados pela trepidação da secção rítmica de Fred Frith e Tom Rainey, a demencial e tortuosa corrente eléctrica da guitarra de Nels Cline em diálogo esquizóide ora com o acordeão de Andrea Parkins, ora com as cordas dos violinos, o tempero ácido e eficaz da electrónica de Thomas Lehn e do turntablismo de Otomo Yoshihide, que pontuava com acerto as descargas cintilantes do trompete de Natsuki Tamura, a dinâmica balanceando entre o “a todo o vapor” e andamentos mais tranquilos, que nalguns casos evocaram latitudes musicais como o Mediterrâneo e o Médio Oriente, solos energéticos de múltiplas formas e movimentos texturais, o regresso à inquietante bonança para de novo retomar a grande massa das descargas de electricidade em regime de alta tensão.
Um pequeno esforço de concisão nalguns dos quadros desta imensa exposição, que passou para além da hora habitual, teria apenas aperfeiçoado um pouco mais uma prestação de se lhe tirar o chapéu. Como dispensável teria sido a apresentação de um novo arranjo de “After de Rain”, também de John Coltrane, após ter sido servido um prato com aquela magnitude. Se tivessem invertido a ordem dos factores este ligeiro reparo deixaria de fazer sentido.
Mais do que exímia na arte de entender e transformar a gramática de John Coltrane, a Rova::Arkestrova é extraordinária no modo como descobre e revela segredos e detalhes recônditos de uma obra monumental, peça central do legado de um dos maiores criadores do jazz de sempre. Profundo, gigantesco e fascinante trabalho de transformação e transfiguração que faz jus à inquestionável perenidade de “Ascension”. Para recordar com prazer (ou execrar) 100 anos que se viva.
Rova::Orkestrova - Electric Ascension
Quinta-feira, 3 Ago 2006, 21:30 - Anfiteatro ao Ar Livre da F. Gulbenkian