T.E.C.K. String Quartet
Em concerto único na Trem Azul a 6 de Fevereiro, às 19h30.
Tomas Ulrich - violoncelo / Elliott Sharp - guitarras acústicas
Carlos Zíngaro - violino / Ken Filiano - contrabaixo
End Zone
«Um dos escritores favoritos de Elliott Sharp, Don DeLillo, tem publicado um estranho romance (“End Zone”) em que o futebol americano lhe inspira associações com a guerra nuclear e as técnicas e tecnologias médicas invasivas, um exemplo de como a realidade dos nossos dias pode confundir-se com os mais delirantes cenários de ficção científica, de que, aliás, o guitarrista é um confesso entusiasta. A páginas tantas, refere-se Delillo aos pequenos seres vivos (gatos, cães, lebres, esquilos, etc.) que todos os dias são atropelados nas vias rápidas e que, com o tempo e a quantidade de pneus que lhes passam por cima, são – a expressão é do próprio romancista – “macadamizados”, isto é, integrados no alcatrão e no empedrado.Quando o engenheiro escocês John Loudon McAdam inventou o macadame no século XIX para pavimentar as ruas do Reino Unido, se não poderia imaginar a dimensão internacional que a sua iniciativa tomaria, muito menos fazia ideia de que o processo teria a propriedade de transformar corpos orgânicos na matéria aglutinadora das camadas de agregado mineral. Os veículos motorizados estavam ainda por surgir, mas o certo é que a evolução do automóvel, com o aumento da velocidade do mesmo e o surgimento de grandes e pesados camiões, determinou que a componente animal se tornasse tão importante para a circulação de pessoas e cargas. Se antes eram os animais que nos transportavam, hoje tal continua a verificar-se deste outro modo. Convém não esquecer igualmente que a mobilidade automotora segue o princípio da balística – um carro não é mais do que um projéctil controlado, com a particularidade não só de se dirigir a um destino (um alvo), mas de mudar de direcção, como, aliás, acontece com os mísseis dirigidos à distância por computador. E que, para todos os efeitos, esse carro só se movimenta porque o seu motor é de combustão, ou seja, porque segue a mesma lógica dos explosivos. Projécteis que são, quando vários automóveis se encontram nas rodovias há sempre o risco de colidirem, com perdas de vidas como consequência, e a verdade é que o equilíbrio dos censos depende dessa circunstância. A estrada tornou-se num mediador de vida e de morte e até num regulador de populações.
O que Elliott Sharp propõe com Carlos Zíngaro, Tomas Ulrich e Ken Filiano no projecto T.E.C.K. é uma analogia da voragem sedimentadora do macadame, e como seria de esperar não pretende passar por um meio de entretenimento para as famílias, mas afirmar-se enquanto arte, inconveniente e cínica como qualquer arte verdadeiramente emancipada de funcionalidades sociais que tenham o propósito do “divertimento”. São muitos os elementos orgânicos que cada um destes improvisadores/compositores introduz no agregado a que chamamos música. Se seguem uma fórmula da música de câmara (uma pequena formação de cordas de arco, com violino, violoncelo e contrabaixo, a que se acrescenta uma guitarra acústica), o certo é que a mesma não serve o lazer do rei, reflectindo antes a complexidade e as contradições dos burgos cosmopolitas contemporâneos, tendo saído do quarto do monarca para se instalar nos espaços públicos que são os teatros e os auditórios, espaços republicanos e democráticos não necessariamente destinados à ocupação dos tempos livres deixados pelo trabalho, mas para questionação cultural e investimento criativo, factores da espiritualidade dos povos num período de amargo materialismo económico. As produções do quarteto T.E.C.K. consistem em híbridos das expressões urbanas da actualidade sob forma sincrónica e diacrónica, consequência da transversalidade de culturas em meio metropolitano e do presente estádio das suas evoluções ao longo do tempo. E porque se alimentam da realidade tal como ela é, têm em conta os factores científicos no seu mapeamento de formas e de metodologias. Sharp tem, inclusive, por costume utilizar algoritmos, tal como um engenheiro o faria. “Crio composições que funcionam como organismos vivos e cujas metáforas operacionais são retiradas de processos biológicos e da matemática da teoria do caos, da geometria fractal e da linguística”, argumentou em entrevista. Daí a definição que faz da sua obra como “música ir/racional”, que nas suas palavras “está para a música como a ficção científica está para a ciência”. Se a tradição afro-americana dos blues está na origem da sua abordagem da guitarra, tal como ouvimos no seu solo acústico “Velocity of Hue”, as técnicas transformadoras que lhe aplica, bem como as coordenadas estéticas de carácter experimental que persegue, distanciam-no da identidade específica dessa tipologia musical etnicista nascida nas margens do Mississipi, o que, de resto, faz todo o sentido, na medida em que a sua cultura é outra. O mesmo tem feito com todas as linguagens que foi adoptando, como o rock, o jazz e a new music, material idiomático que transfigura e mescla no alcatrão das suas propostas pessoais. Não é outra coisa o que fazem os seus parceiros. Carlos Zíngaro tem formação clássica, e se no modo como toca ouvimos ecos de Paganini, Shostakovich e Bartók, também lá estão Ornette Coleman, John Cage e Jimi Hendrix. Para além de que o seu violino não é propriamente o tipificado, antes um sucedâneo de instrumentos de sopro como o clarinete, aplicando até a respiração articulativa destes. “Shakuhachi”, a peça em que mimetiza a sonoridade da flauta de bambu japonesa com o mesmo nome, é um bom exemplo da ambição do músico português quanto a uma metamorfoseação não só lexical como sonora do violino. Pelo seu lado, o violoncelista Tomas Ulrich situa-se entre dois mundos, o do free jazz e o da música contemporânea herdeira de Stravinsky, dúbia condição que lhe permite a “ferocidade” já apontada pela crítica, não habituada a assistir a tal fulgor por parte de um cordofone que, regra geral, tende a tornar invisível o seu executante em contextos onde haja instrumentário mais afirmativo ou o violoncelo é obrigado a um papel passivo. Ulrich integrou o Sirius String Quartet num álbum do grupo de metal alternativo Dr. Nerve, “Ereia”, e isso já quer dizer muito. Ken Filiano é outro caso exemplar: a inovação do desempenho do contrabaixo no novo jazz faz dele uma das coqueluches da cena nova-iorquina. Uma característica do seu jogo é o regresso ao uso do arco. Encadeando harmónicos nos registos mais baixos, aplicando preparações móveis entre as cordas e recorrendo a um pedal de volume para uma melhor gestão das dinâmicas, a sua mestria é igualmente modificadora. Imaginem-nos agora a derreter na auto-estrada da música criativa e terão um vislumbre da visão de Don DeLillo entre uma bola perdida e uma entubação hospitalar, com um cogumelo de fumo a levantar-se no horizonte... As “end zones” deste mundo podem ser pontos de partida para outros caminhos. E um livro pode inspirar uma prática musical».
Rui Eduardo Paes