Dave Douglas, visto por João Santos
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.Dave Douglas toca em Lisboa no próximo dia 12 de Março. À cabeça do programa está a apresentação do álbum Mountain Passages, recentemente editado pela Greenleaf. Será no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. Com Douglas, vêm Michael Moore, Rubin Kodheli, Marcus Rojas e Tyshawn Sorey.
Sobre Dave Douglas e o projecto Mountain Passages, escreve João Santos:
“When I first began to experience mountain running, I would feel embarrassment when I found myself talking to squirrels, chipmunks, and birds (crows are particularly attentive). But now that time has passed and I now also talk with trees and rocks, I feel more comfortable with mountains' communications. And what is it like when a day of running ends and I come down out of the mountains? With my limbs caked with mud and my clothes soaked with sweat, I am clean. Though fatigue pulses through every nerve, I am well rested. With my skin torn from brambles and from poking Balsam fir, I am whole. And as to living longer? The mountains and I are eternal. We will visit together as often as I can manage. And one peaceful day, I will return home forever." - (Damon Greenleaf Douglas, 1933-2003)
Uma leitura inicial permitir-nos-ia criar um paralelo entre esta música de Dave Douglas e a montanhosa região que a inspirou. Forçosamente, surgiriam extremos – vales profundos, picos agudos, planaltos verdejantes, áridas escarpas – e apelar-se-ia à vertigem própria do que é criado à escala do mundo natural. Ou então, relembrar-se-iam as palavras do seu pai no que concerne aos caminhos já criados pelos parques naturais dos EUA – Damon, tal como o filho, possuía uma pulsante e esclarecida visão quanto à forma de conciliar o conhecido (a preservação) com o iminentemente novo (a criação). Na sua área de especialidade (cartografia e história - publicou o influente relato «The Bridge Not Taken: Benedict Arnold Outwitted»), defendia que novos trilhos deveriam ser desbravados se quiséssemos efectivamente compreender a nossa relação com a floresta. Na frase com que iniciámos este texto – poeticamente premonitória – está claramente patente a devoção que lhe dedicava.
Em «Mountain Passages», Douglas regista um conjunto de composições estreado (em Agosto de 2003) em pleno coração das alpinas Dolomitas, correspondendo ao convite do Festival “I Suoni delle Dolomiti” para nele apresentar uma peça inédita que, em certa medida, correspondesse ao duplo desafio de a interpretar a mais de 3000 metros de altitude e de se traduzir numa invocação própria da região. (Para mais informações sobre a edição desse ano – e fotos do local – acedam por favor a http://www.fassainfo.com/suoni/). Além de imediatas reflexões políticas e culturais (por exemplo, o tema de abertura é claramente inspirado pela música ladina enquanto «Bury Me Standing» é uma referência ao homónimo livro da Uruguaia Isabel Fonseca, que narra a sua convivência com ciganos nómadas da Roménia, Polónia ou Albânia), Douglas adicionou-lhe uma inesperada dimensão ao decidir-se por dedicar a composição ao seu pai.
Em http://www.greenleafmusic.com/ e, obviamente, http://davedouglas.com/, podem encontrar toda a informação referente ao projecto. E, ainda que biografia e expressão artística se confundam naturalmente no percurso de um compositor e intérprete como Dave Douglas, dê-se-lhe as voltas que se der, este terá de se tratar de um dos seus mais pessoais e complexos testemunho. Mas, por agora, convirá ainda esclarecer que a Greenleaf foi uma editora por si fundada – não apenas para a sua própria produção, claro – e que no seu site encontram uma extensa biografia, notas sobre a gravação deste álbum, um conjunto de críticas ao disco (do allaboutjazz à Downbeat), além de fotos de alta resolução e demais material promocional. Como saberão, o quinteto NOMAD apresentará entre nós este álbum já no próximo dia 12, no pequeno-auditório do Centro Cultural de Belém. Por questões de agenda, a integrá-lo estarão os músicos que têm acompanhado Douglas nas últimas apresentações nos EUA - Michael Moore, Rubin Kodheli, Marcus Rojas e Tyshawn Sorey – e não a formação patente em «Mountain Passages». O disco, esse, fica como o primeiro por nós trabalhado desde que decidimos iniciar nova actividade. E fica bem, até porque o 1º disco que promovi na Ananana – há precisamente 5 anos – foi o «Leap of Faith» e o último que o Rui promoveu na Multidisc, há 3 meses, foi o «Bow River Falls». Entretanto, a nossa empresa está ainda em processo de formação, pelo que o apresentamos em nome individual, o que até nem fica mal.
Esta não é a primeira vez que Douglas se desloca a Portugal. Esteve ainda há pouco tempo – respectivamente em 2001 e 2002, enquanto líder – nos Festivais de Seixal e Ponta Delgada. Mas, tal como convém, esta formação tem pouco em comum com as anteriores.
Ao longo de mais de 15 anos, paralelamente ao seu percurso no jazz, Douglas compôs música para bailados, agrupamentos de câmara e, inclusivamente, para Orquestra Sinfónica. Em 23 álbuns predominantemente dedicados ao seu repertório, comandou múltiplas formações numa série de tangentes entre o jazz de vanguarda, a música clássica e o folclore. Participou, como convidado, em mais de 100 gravações. Após uma série de Master Classes e Workshops nas principais Universidades Norte-Americanas, é há 2 anos director artístico do Banff International Workshop in Jazz and Criative Music. Recebeu bolsas do National Endowment for the Arts e do fundo Meet the Composer. É um dos mais influentes, criativos, prolíficos e originais músicos das últimas duas décadas.
Discografia: http://home.arcor.de/nyds-exp-discogs/index0.htm
Enquanto líder >
A abrir a década de 90, surge ao lado de Kermit Driscoll, Mark Feldman, Andy Laster e Tom Rainey no quinteto New and Used (Knitting Factory) – não se trata propriamente de uma formação por si liderada, mas pode afirmar-se que é nela que começa a mais dar nas vistas enquanto compositor. Em 1993, a italiana Soul Note edita «Parallel Worlds». Recorrendo a Mark Feldman (violino), Erik Friedlander (violoncelo), Mark Dresser (contrabaixo) e Michael Sarin (bateria), Douglas estreia-se à frente de um grupo de certa forma empenhado em revitalizar a prática do Third Stream, surgindo com intensas composições originais e brilhantes releituras de Webern, Ellington e Stravinsky.
Em 1994, a Canadiana Songlines edita o primeiro álbum do Tiny Bell Trio, de Douglas, Brad Shepik e Jim Black. Como principal impulso, criar uma música espontânea permeável a influências de formas tradicionais Europeias, nomeadamente das Balcãs, com destaque para as interpretações de temas Húngaros. Espaço ainda para uma composição de Kurt Weill e 6 originais de Douglas.
Em 1995, à luz de Booker Little – de quem interpreta 3 temas – Dave Douglas surge na New World com o álbum «In Our Lifetime», liderando um supergrupo com Uri Caine ao piano, Joey Baron na bateria, James Genus no contrabaixo, Chris Speed no clarinete e saxofone, Marty Ehrlich no clarinete baixo e Josh Roseman no trombone. É, no entanto, na leitura das suas peças mais longas que sobressaem as fortes características da sua música – de um musculado lirismo a um dramatismo quase púdico, Douglas ia criando uma voz única no panorama do jazz de vanguarda.
É igualmente de '95 a segunda gravação do Tiny Bell Trio, «Constellations», desta feita na Suiça Hat Hut. Permanecem as influências da Europa de Leste, mas sobressai a agenda política de Douglas (da guerra na ex-Jugoslávia à exploração laboral na fronteira entre os Estados Unidos e o México) – factor aliás, que, de forma mais ou menos dissimulada, estará sempre presente nos seus álbuns.
Um ano depois, novamente na Soul Note, o apropriadamente denominado «Five» torna a explorar a pouco habitual formação de cordas (com Drew Gress substituindo Mark Dresser) que Douglas havia apresentado na sua estreia. Uma interpretação de Monk, outra de Rahsaan Kirk e uma série de originais dedicados a compositores como Wayne Shorter, John Cage, Steve Lacy ou Woody Shaw.
Em 1997 reaparece com o bem sucedido Tiny Bell Trio com um álbum gravado na Europa (precisamente «Live In Europe»), editado pela nova iorquina Arabesque. Para além do repertório comum aos registos precedentes, há espaço para uma curiosa abordagem ao universo de Robert Schumann.
É do mesmo ano «Sanctuary», registo duplo de duas datas no Knitting Factory editado pela japonesa Avant. É um dos seus mais exploratórios documentos incorporando Anthony Coleman e Yuka Honda nos samplers, Cuong Vu no trompete, Mark Dresser e Hilliard Greene nos contrabaixos, Dougie Bowne na bateria e Chris Speed em clarinete e saxofone. Manobrando por entre as elásticas fusões da downtown, Douglas combina grooves electrónicos com incursões pela memória do melhor jazz eléctrico.
A fechar ’97, «Stargazer», álbum dedicado a Wayne Shorter, entre interpretações do seu repertório e novas composições por ele inspiradas. O sexteto é de luxo: Douglas, Chris Speed, Joshua Roseman, Uri Caine, James Genus e Joey Baron.
1998 é mais um grande ano para Douglas. Primeiro, com «Moving Portrait» (DIW), criando novos arranjos para 3 canções de Joni Mitchell – num quarteto de peso com James Genus no contrabaixo, o sempre precioso Billy Hart na bateria e o pontilhante Bill Carrothers ao piano – e dedicando-se a uma série de composições contidas e intimistas, que renovam uma dimensão algo espiritual e elegíaca na sua música e vêm, de certa forma, abrir as portas ao seu lançamento seguinte, o impressionista «Charms of the Night Sky» (Winter & Winter). Aqui, com Greg Cohen no contrabaixo, Mark Feldman no violino e Guy Klucevsek no acordeão, Douglas assume uma perspectiva quase essencialista na sua escrita para pequeno ensemble (ou, pelo menos, claramente pós-minimalista), num conjunto de motivos de algum dramatismo, presos a dinâmicas subtis e a um estado de quase melancolia suspenso pela respiração lenta do seu sopro, vagamente temperados por melodias balcânicas ou judaicas. Depois, desta feita na Arabesque, equilibra a balança com um registo a roçar o free bop, «Moving Triangle». Com Chris Potter no saxofone, James Genus no contrabaixo e Ben Perowsky na bateria, Douglas demonstra mover-se à vontade em áreas mais frontais e mais dependentes do virtuosismo, inventividade e capacidade improvisacional dos seus intervenientes.
A abrir ’99, na sua formação “Soul Note” (Feldman, Friedlander, Gress e Sarin), uma certa síntese das suas tendências mais eruditas, passando pela música clássica, pelo klezmer e pela música de câmara de vanguarda, no álbum «Convergence». Foi também neste ano que encontrou um lar para o seu Tiny Bell Trio na Winter & Winter. «Songs For Wandering Souls» veio cimentar a posição deste trio como um dos mais originais e emocionalmente comunicativos no universo do jazz contemporâneo. A interacção entre Douglas, Shepik e Jim Black é notável.
2000 é o ano do seu acordo de exclusividade com a RCA. Após quase uma década de dispersão por 9 editoras independentes, Douglas assina um contrato válido por 5 anos com uma multinacional, garantindo um nível de investimento e exposição até então por igualar. Antes, na Arabesque, tempo para «Leap of Faith» com Potter, Genus e Perowsky. Não seria necessário invocar o desafio do título para que todos os amantes de jazz aceitassem que estavam perante um criador único, com – pelo menos ao nível da sua geração - um quase inigualável legado criativo. Este quarteto é explosivo e intenso e um dos seus maiores triunfos criativos. Depois chegou a estreia na RCA com «Soul on Soul», uma terna e brilhante invocação da memória de Mary Lou Williams, ao lado de Chris Speed, Greg Tardy, Joshua Roseman, James Genus, Joey Baron e Uri Caine, com particular rigor e respeito por um conceito de tradição que, feitas bem as contas, nunca foi assim tão conformado quanto isso. A fechar 2000, a reedição do seu agrupamento de «Charms of the Night Sky» em «A Thousand Evenings». Mais uma vez, Douglas era o testemunho vivo de que a disparidade de interesses não implica dispersão criativa – ou muito menos de públicos – mas antes um fluxo e refluxo constante capaz de lidar com o maior número possível de possibilidades e interrogações. Por aqui especulava-se sobre o jazz de câmara, o folclore europeu, tango e klezmer, num conjunto de ideais de incessante reafirmação de individualidade.
2001 começa com «El Trilogy», disponível exclusivamente através da loja da Downtown Music Gallery. Com Feldman, Klucevsek, Cohen, Susie Ibarra e Gregory Tardy, grava a música que compôs para a Trisha Brown Dance Company. São um conjunto de peças líricas, delicadas e evocativas, por vezes lembrando Copland ou as miniaturas de Ives. É do mesmo ano «Witness» - o tal com o tema de spoken word narrado por Tom Waits. Trata-se de um álbum influenciado pelas preocupações políticas de Douglas, no qual participam um conjunto de músicos habituais nos seus registos (Chris Speed, Feldman, Friedlander, Sarin, Gress, etc).
Com «The Infinite», de 2002, Douglas funda um novo quinteto (Uri Caine, Chris Potter, James Genus e Clarence Penn) e invoca Miles Davis – essencialmente da fase a partir de ’68, quando os teclados electrónicos começam a introduzir-se nas suas formações. Mas o ouvinte era surpreendido ao verificar que haviam aqui versões de Rufus Wainwright, Mary J. Blige e Bjork. É, no entanto, em «Freak In», um ano mais tarde, que explora mais profundamente as possibilidades da criação de novos híbridos e fusões. Com Jamie Saft, Marc Ribot, Brad Jones, Joey Baron, Ikue Mori ou Craig Taborn na formação, aborda novas texturas e tangentes, aplica mais efeitos e manipula o output criativo dos seus instrumentistas num software de computador – como há bem pouco tempo fez igualmente Tim Berne, também com bons resultados. Nada, no entanto, que soe estéril ou que não sugira uma transbordante energia e complexidade invulgar.
No ano passado, o último álbum em exclusivo para a RCA, «Strange Liberation», de novo com Uri Caine, Clarence Penn e Chris Potter, mas com uma adição que sempre fez sentido mas que demorou a acontecer, a de Bill Frisell na guitarra. Espaço, de certa forma, sem abandonar o jazz, para Douglas ingressar num mundo paralelo ao seu, mas igualmente vasto e de uma elegância sem precedentes, onde os ecos do primeiro cancioneiro norte-americano ressoam livremente. E, antes dos balanços, «Bow River Falls», na Premonition, com Louis Sclavis, Peggy Lee e Dylan van der Schyff, resultante da sua participação no workshop anual de Banff. Douglas havia tocado já com Lee e Schyff no excelente «In The Vernacular», de François Houle, e a fluência e naturalidade por eles retribuída – num registo de um certo experimentalismo formal – permitiu-lhe conceber NOMAD, a sua última formação.
Enquanto sideman >
Primeiras gravações em meados dos anos 80 com os Doctor Nerve - formação liderada pelo guitarrista Nick Didkovsky - com os quais veio a gravar 5 álbuns. Até ao início da década de 90: participação em múltiplos projectos relativamente experimentais, liderados por compositores e instrumentistas como Mark Wagnon, Mark Whitecage, Vincent Herring, Dave Cook, Peter Tomlinson, Jamie Baum ou Michael Jefrey Stevens. Anos 90: notabilizado ingresso em projectos como «... Plays The Music Of Mickey Katz», de Don Byron, no ainda activo quarteto Masada, de John Zorn (no qual gravou a seminal série de 10 álbuns para a DIW), em várias formações lideradas por Myra Melford, Michael Formanek, Mark Dresser, Fred Hersch, Greg Cohen ou Uri Caine (incluindo o destacado projecto «Urlicht/Primal Light» consagrado à música de Gustav Mahler), novamente com Zorn em «Bar Kokhba», no Rova Saxophone Quartet (para a interpretação de «Ascension», de Coltrane), no What We Live, de Lisle Ellis, ao lado de uma luxuosa formação (Marty Ehrlich, Lester Bowie ou Hamiet Bluiett) para o regresso às gravações de Fontella Bass (em «No Ways Tired»), ou, entre outros, no agrupamento de François Houle para «In The Vernacular» - isto tudo, além de pontuais e curiosas ingressões no domínio da Pop, como convidado em álbuns de Suzanne Veja, The Band, Sheryl Crow, Sean Lennon, Cibo Matto ou Ron Sexsmith. Desde 2000: numa fase de maior produção individual, espaço ainda para a participação em «Flights of Fancy» de Joe Lovano, no «The Gift», de Zorn ou em «Verse», de Patricia Barber. - João Santos