A abertura do segundo ciclo de concertos da 25ª edição do Jazz em Agosto (o primeiro já havia sido aqui comentado), coube ao sexteto do trompetista norte-americano Taylor Ho Bynum. Músico de primeiro plano, ainda está a crescer como compositor e trompetista. Nesta última faceta, Bynum é capaz de pôr o instrumento a cantar ou simplesmente a produzir ruído abstracto, num idioma de muitas formas e complexidades. Quem tinha dúvidas deixou de as ter: a escrita e improvisação de Bynum é assumidamente marcada pelo trabalho do seu mentor e principal influência artística, Anthony Braxton, exprimindo-se por vezes numa tonalidade que vai buscar referências ao lado mais escuro de Bill Dixon. O contexto em que se exprime apresenta um tipo de formação fora do comum, com duas guitarras eléctricas (Mary Halvorson e Evan O'Reilly), viola/baixo eléctrico (Jessica Pavone), saxofone tenor/clarinete (Matt Bauder) e bateria (Tomas Fujiwara), de resultados interessantes, com solos incisivos sobre estruturas temáticas que se iam moldando à medida em que se explanavam, por entre linhas melódicas simultâneas em tons de calipso, rock e avant-jazz, elementos que entram na composição do jazz de câmara do sexteto, tal como soa em The Middle Picture, disco saído na Firehouse 12, em 2007. Ao longo dos temas, entre eles uma longa suite dedicada a Braxton, preponderou o som contrastante das guitarras, colocadas em cada um dos extremos da panorâmica – O’Reilly mais seco e roqueiro; Halvorson em afirmações de delicadeza robusta e sensibilidade angular – a fazer “cama” para a elaboração dos sons acústicos de cordas e sopros, com Bauder em noite inspirada, face a uma Pavone discreta e mais convencional, sob a marcação cerrada da bateria em modo de malha apertada. Um desacerto aqui ou ali, minudências sem importância, não chegaram para estragar a desafiante prestação do sexteto, talhado para ser ouvido noutro tipo de ambiente, de preferência dentro de portas.
Memorize the Sky, trio do saxofonista Matt Bauder, do contrabaixista Zach Wallace e do percussionista Aaron Siegel. Juntos, levam uma década de trabalho na procura do ponto de equilíbrio para a música que fazem. Graficamente, poder-se-ia representar graficamente por uma linha contínua e maleável que segue ao sabor da onda e vai sendo modelada através da adição ou subtracção de elementos, sem saltos bruscos, nem súbitas alterações morfológicas. Devagar, em passo lento e seguro, quase sem se dar por ela, a música instala-se e interpela quem a ouve. Há na música do Memorize the Sky um efeito ilusório que poderia sugerir facilitismo. Bem pelo contrário, é na austeridade da proposta, no minimalismo gestual e sonoro, fruto duma depuração que só o tempo, a estabilidade e a rodagem enquanto trio permitiriam, que reside o potencial exploratório das múltiplas relações tímbricas. É do suave desdobrar da cor em diferentes matizes e sobreposições, que nasce a profundidade da interacção instrumental e se monta o jogo com a percepção auditiva da assistência. Cativante, esta forma personalizada de música improvisada de base acústica, que se alimenta de tantas influências que é virtualmente impossível nomeá-las. Nem isso teria qualquer interesse. Mas é algures entre a música de câmara contemporânea e o jazz exploratório, que o Memorize the Sky crava e desfralda a sua bandeira.
Sylvie Courvoisier e o grupo Lonelyville vieram a Lisboa mostrar a sua música de câmara concertante. Excelente, dirão uns, aborrecida e entediante, direi eu. Essencialmente concentrada num tipo de desenho melódico extremamente ornamentado, a música que se ouviu resultou num pastiche saturado e saturante, um exercício de estilo que usa e abusa do arranjo supérfluo e esteticamente passadista, demasiado presa a uma estrutura de malha apertada que sufoca e não deixa entrar o ar. A fórmula, rígida nos pressupostos e explanação de ideias, permite antecipar que o concerto de hoje possa soar precisamente igual ao de amanhã, e assim sucessivamente, tirados a papel químico. tal como os solos sacarinos de Mark Feldman e Vincent Courtois, ambos no pior estilo de improvisação, avelhentado e passadista. Lamentavelmente, esta música não fala à mente nem ao coração, não faz sonhar nem transporta para lado algum, a não ser até ao bar mais próximo, para longe daquela coisa desengraçada. E que andava Gerald Cleaver (!) a fazer ali? Que faziam os bichinhos electrónicos de Ikue Mori, além de amarinhar pelos móveis de estilo e sujar um pouco aquele brinquinho de limpeza e irrepreensível arrumação suíça? Nada. Enfim, muito chata esta concepção de Madame Feldman, longe de outros fulgores bem mais apelativos. Causa perplexidade pensar que foi esta a mesma pianista que esteve no Jazz em Agosto de 2006, em triângulo com Ikue Mori e Susie Ibarra, o trio Mephista, grupo que deixou uma das melhores e mais duradouras impressões daquela edição. O algodão engana, afinal. A favor do pastelão “Lonelyville” e da sua gramática demasiado canónica e classizante, contou a competência dos músicos, todos eles exímios. O que, não se questionando, não chega para pintar um bom concerto. Nem vale a pena gastar mais tempo com isto.
Para meu gosto, outra das grandes e suculentas surpresas – talvez antes a confirmação de que a proposta poderia funcionar e de que a expectativa criada à sua volta faria sentido, ou se, pelo contrário, à maneira dos políticos, não passaria de promessa incumprida – chegou através da circunstancial associação do acordeonista francês Pascal Contet, homem de muitos mundos musicais, de Boulez à dança, e do contrabaixista norte-americano Barre Phillips, um veterano de 74 anos que tem um curriculum como provavelmente mais ninguém hoje no activo. Phillips, além de ter tido uma belíssima prestação nos diálogos com o acordeão, foi desconcertante e comovente na maneira afável e delicada como tocava as cordas do contrabaixo, sem um som a mais que fosse, sempre na justa medida de entoação e intensidade que cada momento requeria. Contet… que prodigiosa figura de músico improvisador, jovem, se comparado com Barre Phillips, mas pleno de sabedoria e respeito pelo parceiro de duo com quem partilhava o primeiro encontro em público. Sensacional e um dos melhores e mais emocionalmente compensadores momentos do Jazz em Agosto.
A fechar o ciclo, o Peter Brötzmann Chicago Tentet, designação que abriga um extraordinário grupo de músicos. Onze, como numa equipa de futebol, e não dez, como o nome faria supor. Brötzmann põe-se de fora? Não, ele é o maestro visível e invisível, o arquitecto deste edifício de sólidos alicerces, que tece as mais inebriantes relações espácio-temporais. É do centro da terra que lhe vem a energia que há 10 anos a esta parte envolve algumas das mais importantes figuras da música improvisada actual, versados todos no vernáculo do free jazz / improv. Não sei se foram tocadas duas ou três composições; sei apenas que foi hora e meia seguida de concerto, que teve de tudo: sopro titânico a plenos pulmões, diálogos excruciantes de Brötzmann à vez com os seus rapazes (enquanto, à distância e em segundo plano, Ken Vandermak dirigia as harmonizações); secção rítmica variada e complexa (contrabaixo, violoncelo e duas baterias), solos, duos, trios a arrumar e a desarrumar a loja, dispersão em cromatismo multicolor – aspectos postos em evidência pelas constantes permutas de posicionamento dos elementos móveis, pelas constantes variações dinâmicas, ora em combustão lenta, ora em explosão instantânea. Acima de tudo, valeu a força colectiva em cujos trâmites o Peter Brötzmann Chicago Tentet impressiona toda a gente, aficionados, iniciados e eventuais curiosos, com as suas inflexões e vertiginosas assimetrias. Música com memória, não deixa de convocar para este tempo ecos dos sons primaciais do que se veio a chamar jazz, é também uma música do presente e do futuro, reconhecível no acto de saber olhar retrospectivamente para os 10 anos de actividade, fermenta e deixa perceber que há espaço para maravilhar. E assim foi: de cada vez que tocava a reunir e o passo do groove acelerava, sentia-se emergir uma vibração que parecia vir do centro da Terra – outro nome para a alegre vitalidade desta música que fez a festa de encerramento do Jazz em Agosto/2008, aquela que certamente perdurará na memória de quem assistiu aos concertos, e que a guardará como uma das melhores edições dos últimos anos, pela elevada qualidade artística das propostas.