Assisti ao segundo concerto do novo projecto do saxofonista e compositor luso-brasileiro Alípio C Neto, SINGULARITY, no Hot Clube de Portugal, em Lisboa, ontem (25 de Maio) à volta da meia-noite. Prezo-me de conhecer bem o trabalho de ACN, pelo que não foi de estranhar ter ido ao encontro de um grupo que, mal se formou, já apresenta um som maduro e trabalhado, com tudo colocado no devido lugar, mesmo (ou sobretudo) num tipo de manifestação artística em que as decisões são tomadas no instante em que várias opções se deparam no caminho. Nessa medida, o trio, dentro da diversidade idiossincrática dos seus membros, falou a uma só voz, com Alípio a dar espaço para solos, duetos e triangulações, num vai-vem entre a forma e a abstracção, com deambulações largas por um vasto conjunto de sinais identitários do jazz, com passagem pelo bop, free, jazz de câmara e blues cubista, tudo envolto em progressão swing mutante. Foi desse modo que o trio conseguiu fundir o devir temporal que vem de tempos distantes da historia do jazz para o momento presente, integrar tudo numa só corrente de expressão multipolar, abrindo novas amplitudes de visão futura – tudo condensado no instante em que a música brota a partir da escrita e da composição instantânea por via da improvisação em trio. Um prazer, ouvir Alípio C Neto a discursar solto e seguro no saxofone soprano curvo, instrumento que lhe tem permitido acrescentar agilidade e fantasia ao seu som mais potente e robusto de tenor. Tem dado bons frutos a atenção que ACN tem dispensado ao soprano neste último ano de intenso trabalho de descoberta e invenção sonora. Bem secundado esteve pelo contrabaixista japonês Masa Kamaguchi, conhecido pelas gravações que tem feito para a editora Fresh Sound, com o pessoal da downtown de Nova Iorque, do Jazz Composers Collective, e também com Alex Harding e com o veterano Ahmed Abdullah, o que dá bem a ideia da versatilidade e ductilidade do músico. Kamagushi mostrou ser um contrabaixista criativo, de timbre suave e leve, tão bom a acompanhar e a marcar o tempo, como a colorir e a preencher espaços, além de ter assinado dois ou três solos de grande invenção, numa espécie de jogo de arte marcial com o contrabaixo. Num mar de contrabaixistas que são, tantas e tantas vezes, ou imitadores de William Parker ou clones uns dos outros, é bom encontrar alguém personalizado como Masa Kamagushi. Perfeito para fechar o triângulo, o baterista norte-americano Clarence Becton. Impressionante na sabedoria dos seus 74 anos, na humildade de quem, tendo vivido e trabalhado com grandes vultos do passado (só para dar uma ideia, Thelonious Monk, Mal Waldron, Joe Henderson e Henry Grimes), transporta consigo a capacidade única de se (nos) maravilhar com a simplicidade de um som com a conta, o peso e a medida que o contexto e a situação requeriam em cada momento. Nem mais, nem menos. Novo projecto, bem interessante, por sinal, este que o saxofonista Alípio C Neto pôs em movimento e que se quer ver mais vezes e a rodar por aí, como hoje (25 de Maio) à noite (21h30), na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. Se com um ensaio apenas foi o que se ouviu, com mais trabalho e fluidificação de procedimentos, todo o potencial oculto virá por certo ao de cima.