Esta caiu-me no colo sem querer. Andava à cata de raridades e peças obscuras e saiu-me esta improvável pechincha a preço de ultra-saldo, disco que já havia cobiçado, embora a preço que, de tão escaldante, me fez abandonar a melhor das intenções aquisitivas. Falo da Grande Missa em Dó Menor de Mozart, KV 427 (Große Messe, Messe en Ut Mineur ou C Minor Mass), na leitura recente de Emmanuel Krivine. Com Sandrine Piau (soprano), Anne-Lise Sollied (soprano), Paul Agnew (tenor), Frédéric Caton (barítono), o Accentus Ensemble e La Chambre Philharmonique dirigida por Krivine. Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) escreveu 16 missas, 12 delas ao serviço do seu patrono, o príncipe-arcesbispo de Salzburgo, Hieronymus Colloredo. Conta-se que Colloredo gostava de interferir de forma directa no trabalho do compositor, condicionando-o esteticamente, ou porque não era grande apreciador da arte da fuga, em voga na época, gosto que Mozart recebera de Bach e Handel, compositores que estudava à época, ou porque gostava que os textos litúrgicos não perdessem a plena inteligibilidade no meio do emaranhado do contraponto. Havia também outro constrangimento de ordem temporal, que tinha a ver com a duração média de uma missa, a qual não deveria ultrapassar os três quartos de hora. Já em Viena, e fora da alçada de Colloredo, Mozart escreveu esta missa entre 1782 e 1783, como um voto pela melhoria do estado de saúde daquela que viria a ser sua mulher, Constanze, a filha mais nova da família Weber. Constanze, soprano amadora, tinha uma certa predilecção pela fuga. Esta, associada à religiosidade da família Weber, pode ter sido uma das razões para Mozart ter voltado à forma da missa, escrita fora do programa de encomendas que lhe iam fazendo. Duzentos anos depois, a obra continua rodeada de mistério. Porque é que a Grande Missa, tal como a outra das mais famosas missas de Mozart, o Requiem, ficou incompleta? A explicação talvez seja simples: falta de tempo, já que na mesma altura, em 1782, Mozart escrevia a ópera O Rapto do Serralho (Die Entführung aus dem Serail), em simultâneo com a série de quartetos de cordas dedicados a mestre Haydn. O Requiem viria a ser terminado por Süssmayr, discípulo de Mozart; a Grande Missa foi tendo várias propostas de versões completas (Schmitt, Robbins Landon, Robert Levin, ...) embora também seja tocada tal como o autor a deixou. Esta vibrante versão de Emmanuel Krivine, de grande qualidade sonora e beleza interpretativa, editada em 2005 pela francesa naïve, partindo da leitura de Helmut Eder (Bärenreiter, 1983), tem o aliciante suplementar de ser executada em instrumentos da época, o que pode dar uma ideia mais aproximada de como Mozart teria pensado que a obra deveria soar.
Kyrie, Mass in C Minor, K. 427, Mozart
John Eliot Gardiner / English Baroque Soloists / Monteverdi Choir