Dando por reproduzida a opinião crítica que escrevi sobre o concerto, e descontando questões de nível, como passagens de nível, com e sem guarda (estas últimas são mais perigosas, mas sempre são sem guarda e nesta matéria tenho é saudades do Guarda Ricardo, do Sam), sem saber eu o que é isso de "alto nível", mesmo assim, penso que não foi um concerto de nível alto. Alto, ali, só mesmo Ornette himself (rodeado de empatas) e o nível do som, em demasia para aquela música e para este par de delicados pavilhões auditivos. O concerto teve até o seu momento sofrível, para rimar. Ou momentos, se atentarmos no contínuo da prestação de Denardo Coleman, monolítico obstáculo de “altos níveis” e “altos voos”. Quem, como Ornette Coleman, nunca fez a coisa por menos de Billy Higgins, Charles Moffett ou Ed Blackwell (suponho que estes devam ser, no critério do leitor, bateristas de “alto nível”, talvez mesmo “ao mais alto nível”), optar pelo matacão do filho para lhe bater nas peles não é seguramente uma decisão isenta de riscos de … “alto nível”.
Mas vamos à “revolução”, sem passar pela casa dos “pormenores irrelevantes", porque esses estão escritos. Diz a história e não mente que Ornette foi um revolucionário. Quando? No tempo das revoluções. Falando sério, é hoje um facto histórico que, a partir do final da década de 50, início de 60, Ornette mudou radicalmente o paradigma harmónico, melódico e rítmico do jazz. Libertou a improvisação dos acordes, como até aí vinha a fazer-se (excepções poucas, com Lennie Tristano, em finais de 40), soltou-se das formas ritmicamente fechadas do bebop, reinventou a melodia e apresentou-se com um novo fraseado, que, partindo de Charlie Parker, levava o seu legado mais além, mantendo a preferência pelos registos médio e agudo do saxofone alto, e preservando o mesmo amor pelos blues e pelo espírito do bop. Foi o tempo dos discos da Atlantic, que têm como pináculo revolucionário Free Jazz (A Collective Improvisation), obra que ainda hoje deixa meio mundo de boca aberta. O ataque colectivo à melodia em duplo quarteto, como duas ondas enormes que se entrechocam, a ausência de centralidade harmónica e melódica – entre outras, coisas até então nunca ouvidas – foram realmente conceitos e práticas revolucionários. Mas isto passou-se quando? Ah, pois, em 1961. De então para cá, Ornette teve ainda ensejo de outro momento revolucionário, nos anos 80, com o conceito de harmolodics, posto à prova com a Prime Time Band. Music is not a style. Music is ideas. In any normal style, you have to play certain notes in certain places. You play in that style only and try to make people believe that style is more important than other styles. Which removes you from the idea. With harmolodics you go directly to the idea – escreveu ele.
E pronto. Daí a pretender que tudo o que o saxofonista tenha feito, ou faça ainda hoje, como um qualquer concerto, tem que ter aposto o carimbo de “revolucionário”, tão estafado nos dias de hoje, ou trazer à baila a “revolução” por dá cá aquela palha, vou ali e já venho. Ornette não tem nada que provar nesta matéria; fez o que fez, tem o seu lugar na história da música e ninguém lhe tira mérito por achar que não é um Midas qualquer que tudo o que toca transforma em ouro. Não há vacas sagradas. Lamentavelmente, o concerto de dia 11 de Agosto, em Lisboa, não foi um momento dourado, pelas razões que alinhei e me dispenso de repescar. E a isso nem sequer obviou o facto de Ornette ter saído o ano passado com um disco excelente, Sound Grammar. Nele – vá-se lá saber como – até Denardo Coleman parece estar em "alto nível", pelo menos à altura das circunstâncias.
Agradeço os contributos e envio abraços a umas e outros.