Guts… foi o que teve Malachi Ritscher, artista plástico, literato, músico improvisador, gravador de concertos (contam-se aos milhares as sessões que deixou em arquivo, na sua actividade de documentalista da cena artística independente de Chicago), ao imolar-se pelo fogo numa sexta-feira, 6 de Novembro de 2006, em pleno centro de Chicago, como forma de protesto contra a política bélica da Administração americana para o Iraque. A actuação, a 3 de Agosto de 2005, do quarteto de Joe McPhee, Peter Brötzmann, Kent Kessler e Michael Zerang (o mesmo de Tales Out of Time, editado em 2002 pela Hatology), foi por ele gravada na sua segunda casa, The Empty Bottle, clube de Chicago. Editado este ano pela Okkadisk, o disco é a homenagem dos quatro músicos ao amigo Malachi Ritscher e às guts que ele teve que ter para cometer aquele último e terrível gesto. Guts (17’46) e Rising Spirits (41’16), as duas composições instantâneas do disco, complementam-se. Guts abre com uma breve introdução de bateria, a que se junta o groove do contrabaixo, como uma chamada para a acção que irrompe em fortissimo. Brötzmann (lado direito) e McPhee (lado esquerdo) anunciam que a coisa vai ser a doer e envolvem-se num interessante despique, um predominantemente ácido e abrasivo (Brötzmann), outro lírico e bluesy (McPhee), com trocas de posição a evocar as grandes batalhas de tenor dos velhos tempos. A fervura vai subindo e mantém-se em ebulição durante boa parte do tema, intervalada com mudanças de intensidade e descidas a zonas de maior serenidade, em toada lamentosa e emocional. Efeitos que acrescentam maior dramatismo à conversa, que entretanto volta a subir de tom até à conclusão. O segundo tema (Rising Spirits) inicia-se com longas passagens de arco de Kent Kessler. Menos intenso que o anterior, o primeiro terço sugere motivos exploratórios típicos da livre-improvisação europeia, um avolumar de tensão que abre espaço para a retoma do mesmo tipo de figurino exposto em Guts, só que agora e durante a maior parte do tempo, com Joe Mcphee em trompete e Peter Brötzmann em tarogato. A meio do tema surge um dueto de contrabaixo e bateria em groove, a preparar novas e excruciantes intervenções dos sopros, primeiro McPhee em sax tenor, depois Brötz em sax alto. Assim se aproximam da coda, que termina numa melopeia doce, a melhor forma de encerrar um concerto em que se cruzaram as mais diferentes emoções, e que deve ter sido memorável para quem a ele assistiu. Bela maneira de homenagear a dedicação do homem que o registou, Malachi Ritscher (1954-2006): As I listen I am reminded of the qualities I hear in live performances; subtlety, inteligence and generosity. Yet, for all of that it has balls, unashamed and unapologetic. For me, that is what a soundtrack for a spriritual warrior would sound like. Guts não revela nada que ainda não se tivesse ouvido da parte destes dois grandes sopradores – aqui ritmicamente acompanhados de forma superior. No entanto, vale pela frescura e pela carga emocional que dele emana, mesmo ao cabo de mais de quatro décadas de actividade, que não pesam nas botas dos homens da frente.