... Entretanto, o disco de David Torn é mesmo um tornado... (adoro fazer trocadilhos fáceis). Ainda há dias aqui comentei sobre Prezens (ECM), quando só tinha um dia de rodagem. Agora que papei o disco todo e já lhe conheço as manhas e os interstícios – mesmo que cada vez que o ouça descubra coisas que ainda não tinha ouvido, tal é sensação de permanente descoberta – posso afirmar que Mr. Torn meteu a mão na massa, radicalizou o discurso como lhe competia, elevando-o a um ponto de refinamento extremo, ao nível da colagem sonora e da improvisação por sobre e entre placas. Mestre Tim Berne dá uma ajuda preciosa, tal como Tom Rainey e em especial Craig Taborn, que aqui veste a farpela de mago da electrónica, excelente duplo do próprio David Torn, à frente a abrir caminho por entre o nevoeiro. Mesmo sendo expectável (e esperado) que Torn sacasse um disco destes mais cedo ou mais tarde, vinte anos depois de Cloud About Mercury, a surpresa é enorme. É que Prezens enche realmente um homem de emoção e contentamento. Disco do ano, já(zz)! Ai e tal, não tem swing e o Duke Ellington e o Irving Mills disseram que sem swing não se faziam omeletas... Pois, pois, é melhor não ouvir... Inclassificável e muito bom.
Futurismo Retro
"David Torn, guitar hero, produtor de dezenas de discos de referência (Ryuichi Sakamoto, David Sylvian, Drew Gress, David Bowie, entre muitos outros), e um dos mais requisitados compositores de música para cinema (“Traffic”, “The Departed”), regressa à casa de Manfred Eicher com um novo disco que não deixa ninguém indiferente. Em “Prezens, Torn reúne três dos maiores improvisadores nova-iorquinos, o saxofonista Tim Berne, o teclista Craig Taborn e o baterista Tom Rainey, e realiza uma obra maior que destila de forma única o orgânico e o sintético. Na primavera de 2005 os quatro músicos juntaram-se num estúdio no vale do rio Hudson e gravaram cerca de doze horas de improvisação colectiva. Dessas fitas nasceu “Prezens”, um dos mais fascinantes objectos audio a marcar o ano de 2007. E um dos seus maiores fascínios deve-se à característica, bem própria dos métodos de produção de Torn, da ambiguidade; Quem toca o quê? De onde vêm aqueles sons? O que se ouve é o saxofone processado de Berne ou a guitarra distorcida de Torn? O que foi realmente tocado “live” e o que foi posteriormente editado em estúdio?
Todas estas questões, que ganharam particular relevo na recente reavaliação da obra de Miles Davis e do trabalho para si realizado pelo mago de estúdio Teo Macero, perdem a sua importância ao sermos envolvidos pelos sons de “Prezens”. Rasgos metálicos, negros, atravessam uma música atmosférica, espacial, desconstruida, que pega em direcções do melhor progressivo do séc XX, e as projecta directamente no futuro daquilo que imaginamos possa ser o jazz criativo do séc XXI. Algo que poderia resultar das personalidades musicais conjuntas de King Krimson, Laurie Anderson e Radiohead, todos eles sob o espírito libertário de Sun Ra.
O início do disco, “AK”, surpreende de imediato quando, após uma introdução estratosférica de Torn, surge o órgão Hammond deliberadamente hesitante de Taborn. Ecos longínquos do blues de Lightnin’ Hopkins, Booker-T ou John Patton, resgatados para um futuro cibernético. O “grito” do saxofone alto de Berne manipulado e convertido em pura distorção digital. Os blues irão um dia soar assim. No segundo tema, “Rest & Unrest”, dá-se uma mudança súbita de registo e surge uma voz que recorda por momentos a poética futurista de Laurie Anderson, envolvida na electrónica digital narcótica de Torn e Taborn. A colisão de sons continua, por vezes próximo do puro “noise” (como em “Sink”), com Torn a exibir o seu característico virtuosismo, contido, altamente sofisticado, bem longe da pirotecnia que afecta muito do jazz dito progressivo que se faz actualmente. Em “Prezens”, cada tema funciona como um organismo vivo, em constante mutação, sendo frequente os temas terminarem de forma totalmente diferente da que começaram. “Neck deep in the harrow...” arranca com um groove que poderia ter sido gravado nas sessões de “Agartha” de Miles Davis, para depois derivar, de forma progressivamente intensa, para uma malha totalmente abstracta de som. Em “Prezens”, David Torn alcança um equilibrio notável entre composição e improviso, uma dialética que é, cada vez mais, o santo graal do jazz contemporâneo. Concentração total e abandono espiritual" - Rodrigo Amado, in Público (Y, 15/06).