Alípio C. Neto DIGGIN’Começo pelo fim: grande concerto ontem à tardinha na Jazz Store da Trem Azul, em Lisboa. O programa do festival “Issue 1” assinalava a actuação do Alípio C. Neto DIGGIN’, o novo quinteto do saxofonista brasileiro (Floresta, Pernambuco) radicado em Portugal vai para uma década.
Como Alípio já nos habituou, também este grupo, dos três que tem em funcionamento, toca música Original (o “O” maiúsculo é intencional), complexa nas suas qualidades harmónicas e rítmicas. A primeira e grata constatação foi que o DIGGIN' soube encontrar soluções novas para os problemas antigos e formular problemas novos para os quais adaptou soluções antigas, aliada à capacidade cognitiva de assimilar e usar um léxico muito vasto, através de um aturado trabalho de grupo, auto-controlo e disciplina na execução das composições. Neste ponto, assinalem-se os relevantes contributos de Gonçalo Lopes (extraordinário tema de abertura, da trilogia "Una, Duna, Trena"), de Jean-Marc Charmier, de Ben Stapp, e de Alípio Carvalho Neto, o chefe de orquestra com o seu já inconfundível estilo acutilante e bem-humorado, que ao segundo concerto do DIGGIN’ (o primeiro acontecera na antevéspera, no Hot Clube de Portugal), consegue conquistar tanto a parte distraída da plateia, como a mais atenta e exigente, e apresentar um trabalho maduro, num estilo plural, inclusivo e multifacetado.
A banda é tremenda, tem enorme potencial criativo (e de progressão e crescimento, como se diz em bom futebolês). De tão eficiciente e naturalmente fluida, parece rodada como em fim de digressão, embora ainda mal tivesse saído dos ensaios e a debutação ao vivo tivesse ocorrido apenas dois dias antes. Como? É simples: com muito trabalho, talento criativo, dedicação e amor à arte, uma alquimia que mistura rua e escola, vadiagem e estudo aplicado. Jean-Marc Charmier (agora sem bigode, também membro do IMI Kollektief, em trompete e fliscórnio) traz consigo maturidade e experiência; e, como é apanágio das suas origens nacionais, muito savoir faire. Alípio divide-se entre harmonizador, arranjador, compositor, solista (saxofone tenor, flautas, pencafone, chocalhos, guizos e outros artefactos adquiridos em recente digressão brasileira) e ainda tem tempo para uma perninha na stand up comedy. Rui Gonçalves, tão forte no bater quanto delicado no pisar de mansinho, continua baterista para todo o serviço, exercido com idêntica competência no IMI Kollektief e no Wishful Thinking, os outros quintetos da holding musical Alípio C. Neto INC. & Associates.
E Gonçalo Lopes e Ben Stapp?! Bom, estes músicos são dois talentos, dois artistas que, ou me engano redondamente, o que é pouco provável, ou terão muito para render no futuro, que é já. No imediato, e pelo que se ouviu, têm todo o crédito a seu favor. Lopes toca clarinete baixo com desenvoltura, vocabulário alargado, perfeita noção de tempo e sentido de oportunidade. Possui um som potente, plástico e elegante. Algumas das melhores composições do grupo são suas. Gostei particularmente do contraponto com os outros sopros e da comunicação com Stapp, jovem tubista norte-americano da Califórnia que tem pano para mangas. Incansável, soprou o “monstro” durante mais de uma hora, tocou as linhas de baixo, harmonizou, cantou as melodias e bateu o pé a tempo inteiro, sem hesitações nem engasgamento. De costas para Rui Gonçalves, que eu ouvisse, não houve uma única marcação fora de tempo, nenhum compasso ficou no tinteiro. Nada a mais, nada a menos. Amazing, este Ben “Stewart” Stapp. Bem me tinham avisado. Mais ainda, quando se trata de um músico da geração MTV.
Do palco para a sala, sentiu-se o que de melhor se pode esperar num concerto ao vivo – uma forte ligação empática e recíproca entre músicos e público, comunicação directa e comunhão geral dentro da música.
Música com um especial toque mediterrânico, que mergulha nas raízes culturais judaico-cristãs, mas aspira ao universal. Sente-se uma forte consciencialização cultural, que se harmoniza e consolida no encontro do espírito greco-romano, na latinidade e nas culturas judaica e islâmica, filtrados e integrados num discurso jazzístico que assim se enriquece e se transforma numa linguagem moderna e complexa, fácil de assimilar e de compreender. Multi-culturalismo actual (que nada tem a ver com o corrente cross-over comercial, bem entendido) que é também um importante referencial do jazz dos dias de hoje, tal como nos anos 20 Armstrong foi o farol; na década de 1930 o swing orquestral; nos 40 o bebop; nos 50 as primeiras marcas do modalismo com Miles; nos 60 o free jazz e Coltrane; nos 70 a fusion; nos 80 as tentativas esparsas de remar contra a ortodoxia marsalista e neo-conservadora; nos 90 o pós-modernismo novaiorquino; e agora, na era da globalização, a emergência e grande projecção das diferentes culturas e modos de fazer (acústico, eléctrico ou electrónico).
O que pode marcar a diferença hoje, como sempre, é o não-situacionismo, a integridade dos artistas, a vontade de apontar para a próxima estrela e a qualidade do produto artístico final. Qualidade que, neste caso do Alípio C. Neto DIGGIN’, merece ser posta em evidência. Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça.
Fotografias de Rui Portugal.