O número de Dezembro da Cadence (normalmente, leio dois números atrasados, não consigo dar vazão), trás uma entrevista muitito interessante e importante com o saxofonista alto, compositor e improvisador excepcional, Frode Gjerstad. O norueguês Frode, que trouxe o trio (Oyvind Storesund e Paal Nilssen-Love) ao Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra/2003, fala sobre a actualidade da música improvisada euro-americana e geral e sobre a norueguesa em particular. Da Noruega, em Portugal, conhece-se sobretudo o etéreo saxofonista Jan Garbarek, pelo extenso material gravado para a ECM. Ambos os músicos vêm do frio, mas é Frode quem vem e vai para o free. Na entrevista a V. LoConte, Frode fala das suas origens musicais, de quando começou a ouvir Armstrong, Teddy Wilson, Gene Krupa, Harry James e Lionel Hampton. Foi por essa altura, ainda menino, que começu a tocar corneta na banda da escola. Mais tarde, ouviu Coleman Hawkins, Ben Webster. Depois, Eric Dolphy e as suas concepçõpes começaram a mudar. Este último deixou-lhe uma impressão mais profunda que todos os outros. Os blues, principalmente Howlin’ Wolf e Muddy Waters, também fizeram parte do seu percurso formativo.
Em 1965, Ornette Coleman tocou no clube Golden Circle, de Estocolmo. A intensidade do texano deu brado por toda a Escandinávia e Frode Gjerstad não ficou imune aos novos sons do saxofone e do violino de Ornette. Por essa altura, Albert Ayler fazia jazz-motins pelo Norte da Europa e o impacto foi inevitável. “I was totally blown out” – diz Gjerstad. Se até 1968 Frode não conheceu senão a música de improvisadores americanos, a partir daquele ano dois nomes europeus vieram alterar por completo a direcção do seu interesse musical: John Stevens e o Spontaneous Music Ensemble. Uma entrevista no Melody Maker despertou a atenção do nórdico para a música que se estava a fazer em Londres por aquela altura.
Em 1971, já versado no novo léxico musical, Frode muda-se para a Suécia e passa a residir em Estocolmo. Uma série de novos nomes começavam a despontar: Peter Brötzmann, Elton Dean, Keith Tippett, Albert Mangelsdorf, John Tchicai, os sul-africanos Louis Moholo e Johnny Dyani, entre outros. É na Suécia que Frode começa a integrar-se nos movimentos ligados à música improvisada emancipada do jazz. Quando voltou para a Noruega, em 1975, já sabia o que iria fazer durante os próximos anos: tocar com músicos europeus e americanos expatriados ou em digressão pelo Velho Continente. A agenda era a da improvisação total: som, energia e liberdade. Fundou a editora Circulasione Totale e integrou o quarteto e depois trio Detail, com John Stevens e Johnny Dyani, com quem gravou uma série de Lp’s para a Impetus, num total de sete, a começar por Backwards and Forwards. Do Detail, diz o saxofonista que era demasiado jazz para as pessoas da improv e demasiado free para os jazzófilos. Após contactos com Bob Rusch, produtor da Cadence Jazz Records, conseguiu editar simultaneamente Seeing New York From the Ear e Last Detail.
Uma vez, conta, roubaram-lhe o saxofone tenor em Londres. Arranjou outro instrumento, mas, segundo diz, nunca mais conseguiu obter o som que sacava do tenor desaparecido. Optou então por experimentar o sax alto, para de novo se entregar à exploração de sentimentos e emoções da maior intensidade. A morte de John Stevens, em 94, alterou-lhe os planos. Logo a seguir ao luto, conheceu o pianista norte-americano Borah Bergman, com quem começou a tocar ocasionalmente e a preparar-se convenientemente para embates de maior fôlego, “otherwise he would wipe me out...”. Bergman encorajou-o a encontrar novos parceiros para recuperar da fase pós Detail, o que veio a acontecer com uma enorme variedade de novas colaborações a partir de 1995.
Qual o futuro desta música? – pergunta-lhe V. LoConte. Frode diz que não sabe. A chave, adianta, está provavelmente na convicção e na honestidade com que se fazem as coisas, ingredientes que atraem jovens cada vez em maior número, tanto para tocar como para assistir a concertos. Frode pensa que uma das grandes virtudes deste tipo de música é nunca ter nadado em dinheiro, bem pelo contrário, nem viver do estrelato dos seus protagonistas, salvo numa ou outra excepção. Sendo assim, conclui, quem toca e ouve esta música, fá-lo porque gosta realmente do que faz, visto não haver outros motivos de interesse além daqueles.
Outro motivo para a atracção de novos públicos tem sido o uso da electrónica, associada à improvisação livre. Como uma parte considerável dos manipuladores de instrumentos electrónicos não são músicos na acepção comum do termo, quebram muitas regras e com isso abrem um mundo de novas possibilidades de combinação sonora fora dos cânones do jazz, tal como foi conhecido no passado.
Frode Gjerstad fala ainda da big band que formou em 1985, a Circulasione Totale Orchestra, que buscava inspiração na Prime Time de Ornette Coleman, muito apreciada pelas novas gerações nos países por onde tocou. Para se ter uma ideia da heterodoxia da formação, a edição de 1989 da Circulasione Totale era composta por três sopros, três baixos, três baterias, acordeão, guitarra, um rapper e um dj a tocar free music. Durou 10 anos e extinguiu-se. Em 1998, renasceu e chegou a gravar para a Cadence Jazz Records. Mas o desastre financeiro não lhe permitiu ir mais além e teve forcçosamente que correr os taipais.
Em 1999, Frode investiu num trio 100% norueguês. Com ele fez várias digressões europeias, gravou três discos e chegou inclusivamente a ser um quarteto, com a adição de Peter Brötzmann.
Para sobreviver, Frode intervala os concertos com a leccionação. Actualmente, dá aulas de ciências sociais e de design sonoro em Oslo. E organiza concertos na escola. Já por lá passaram Evan Parker, Kent Carter, Steve Hubback, Borah Bergman e outros do mesmo calibre.
Foi votado Músico de Jazz do ano de 1997, na Noruega, sinal que a música improvisada, a improvisação total, começou a ser reconhecida e apreciada por mais gente, que não exclusivamente pelo núcleo duro. Com a bolsa que recebeu, naquele ano pôde realizar uma digressão nórdica com William Parker e Hamid Drake, que deu origem à gravação de Remember to Forget e Ultima, editados pela CJR.
Como Brötzmann, Gjerstad é um dos grandes saxofonistas em actividade, ambos geralmente desprezados pela comunidade do jazz, que de um modo geral prefere a segurança do caminho conhecido, à aventura por territórios não mapeados, mas que fazem evoluir o género. Pessoalmente, o concerto do trio em Coimbra, em 2003, foi dos melhores que vi até hoje. Frode em sax alto e clarinetes, com Oyvind Storesund e Paal Nilssen-Love, três dos melhores instrumentistas europeus da actualidade. Quem está atento ao que se passa no mundo da moderna música improvisada sabe que assim é. Para saber mais, aconselho a leitura integral da entrevista a Frode Gjerstad.
Cadence – Vol. 30, n.º 12, Dezembro de 2004